segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

LUZ E MESINHA DE CABECEIRA


Só pedia um cobertor e que deixassem a luz acesa.
Mas tudo se recusa em nome do poder
Do caminho contra o caminho que sonhamos
Percorrer. Mais uma hora de sono
Correspondia a uma carícia, pois a manhã
Logo ficava ocupada com a ourivesaria do emprego
Do que salva tantos do tédio ou do suicídio.
Estava na hora e o trânsito podia em fila.
Chegaram depressa os dias sem sono
Nem emprego nem outra desculpa aceitável
Mas o poder, a liturgia do dever permaneceram.
Para que serve o remédio, o comprimido?
Regressa-se sempre ao que se queria esconder
Com renovada violência. Regressa-se à recusa
Anterior. Sempre com a quimera de um dia
Ser diferente, de a ternura vir com
Data de validade e pronta a servir.


Carlos [Luís] Bessa (n. 1967), in Lançam-se os músculos em brutal oficina  - o conhecimento das coisas (2000). «(...) as mais importantes características processuais do autor: uma escrita elíptica, um vigor surpreendente na criação de imagens e no poder sugestivo dos subtítulos e uma extrema atenção a um «real» que escorre pelos dias e pelas páginas com um indisfarçável sabor de recusa» (Manuel de Freitas, Expresso). «Ao contrário de outros poetas, Bessa não afasta totalmente a domesticidade. De facto, nesta poesia o vazio não é sinónimo de niilismo. O vazio é uma constatação lúcida mas não exige uma filosofia (ou uma pose) de existencialismo negro. Bessa nunca deixa de nomear certos aspectos da domesticidade (o casal, os filhos), como uma circunstância que atenua a extrema penúria existencial» (Pedro Mexia, DN). «A vida é a exclusiva matéria da poesia de Carlos Bessa. Não a vida política e socialmente representável, nem a vida que se torna escrita nas biografias. Trata-se, antes, da vida anónima e impessoal, no seu fluir fragmentário e centrífugo, completamente absorvida por mecanismos alienantes. A vida, em suma, que habita a banalidade do quotidiano e expropria o indivíduo de biografia e de experiência» (António Guerreiro, Expresso). «Encontramos o humor, algo disfórico, a ironia, mas mais ambígua, numa intenção de transparência, a pisar o risco às vezes do literal, da banalidade, da pura referencialidade, indecidível. (...) Estilisticamente, o autor mantém, porém em menor grau, tendência para transformar, ou interromper, o enunciado em curso através de construções sintácticas que por vezes surpreendem, são no seu fluxo inesperadas, uma ruptura qualquer, ou uma frase que se deixa à solta, uma ou outra vez a elipse ainda» (Maria da Conceição Caleiro, Público). 

1 comentário:

manuel a. domingos disse...

muito bom poeta, a meu ver.