sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

AS NOITES

A noite, pelo sinal de Vénus, vem.
Noite em dois astros, hoje, somente,
porque hoje olhamos a Terra apenas
e o astro que nos visita com o seu nome.
Aqui, noite para os homens que temem
a vida, a morte, a fuga em vão.
Ou os que trabalham na terra, e com a
própria terra em minas, campos,
ou em voos sobre a terra, imaginários
pássaros humanos. Os que se alimentam
de água, que têm a esperança posta
no movimento das águas: as rotas
dos rios e mares da crosta deste astro escuro.
Noite, que veio, se olharmos Vénus,
sobre o som das cidades, nos continentes,
ou o som das cigarras no Caos novo,
pois o caos já hoje regressa
a margens estéreis, insectos ressequidos,
ramos sem as brisas na folhagem.

Noite, em que não vemos os candeeiros acesos
nas estradas, mas Vénus altíssima de luz,
insone por todos os homens no desgosto,
na doença, no assassínio, no grito.
Para os traídos no amor, para o abandono
que, por todas as horas, dura diariamente
até ser noite. E os que trabalham
as pedras, os metais, já não na forja
mas nas máquinas abstractas, feitas
pelos cérebros que criam a nova realidade.
Também para o amor vivo que cresce
nos corpos, sem tempo, guiado
pelas humanas mãos. E é noite
para aqueles que sabem a geografia
das cidades actuais e as atravessam
em carros e em linhas férreas no espaço,
sob Vénus, o planeta da tarde. Mas também
os que esperam e estão sentados nas estações
velhas, nos velhos cais, nos interfaces
de onde vão para as sempiternas casas,
nas povoações dos homens. E todos
os artífices da madeira, hoje com ferramentas
que também moldam de novo a realidade.

E Vénus vem, para aqueles ofícios
diante de um ecrã, alucinados, com os olhos
abertos para os caligramas de luz.
Assim como para os magros corpos longínquos
que, sem remorsos, a Terra e outros homens
fazem escarvar no solo com os dedos de ossos.
Os que sobrevivem ainda à total perda
da terra, da água, do seu ar e, por fim,
dos próprios astros. E os que vão recuperá-los
com os foguetões dispersos entre os astros,
coisas humanas criadas pelo homem de hoje,
já sonhadas pelos arqui-sábios gregos.

E o homem das tão simples mágoas,
que sorri para o sol e para as rosas,
com o seu irmão na terra, que cultiva
a uva, a azeitona, o dióspiro, a ameixa.
Ficarão estes frutos como símbolos
da humildade do homem perante a noite,
pois quando sozinha Vénus sai no céu,
o agricultor, como eu, medita.

*

E Vénus vem, para as mulheres
que abrem o ventre aos mil girinos
humanos, nascidos nos desertos de África,
vertiginosamente sorvidos pelas moscas.
Para as mulheres, mães, como ela,
do Deus Amor, na noite astral.
Rostos que olham a noite, com a beleza
da treva perfumada dos pomares.

Mulheres que se refugiam do mal,
de guerras, com as longas mãos à espera
dos excedentes da vida. Solitárias
mulheres que não ouvem os ecos naturais
nem os chilreios. Mas vem, Vénus, com as
que tecem e com os fios dos novelos
cobrem o berço dos filhos. As que ordenham,
sob o voo dos morcegos ao fim da tarde,
junto à baba das aranhas de manhã.
Aquelas que nas vilas e nas cidades se vestem
de cassas e de sedas e cantam o seu riso.

É noite para as que nas enfermarias
acolhem os corpos mortos-vivos do Ocidente,
e os corpos também dos distantes jovens
que se inocularam, em inocência,
ou cobiça cruel de vida melhor nos sidatórios de Cuba.
Vem noite, por Vénus, no horror
e na piedade, há tantos séculos juntos,
nesta terra em que um ao outro se chamam.
Piedade, também nome de mulher, com o hálito
maternal nas noites e nas manhãs do Cosmos.

Hoje, Vénus entardeceu no céu claro,
sozinha, face a face com a Terra,
e a Lua só na noite plena se mostrou
e juntou  os seus raios ao amor e ao medo.
Ao cair da noite, estas mulheres, por ruas,
por janelas, olham as casas vagas,
as casas cheias, em que a vida diária
lhes dá algum lugar e um tempo.

*

São as crianças que vibram com as estrelas
e aceitam as noites, por haver manhãs
em que despertam ávidas do mundo.
Noites, em que correm nas cidades sem sombras,
entre árvores que se assomam às janelas
para verem os habitantes, que a noite aqui
desvela, imersos em sonhos reais.

As crianças espalham o puro riso,
ao amanhecer, entre paredes claras
das casas e ruas ainda sombrias.
Vivem no contraste entre luz e sombras,
crescem como plantas atraídas
pelo fascínio do clarão solar. E, quando
Vénus desponta, pelo fim das tardes,
as crianças vão em bando para a louvar
com os hinos antigos dos seus gritos de graças.
São vozes moduladas em agudos, uníssonos,
que já no berço cantavam o amor dos astros.

E as crianças, ao poente, sós, abandonadas
em recantos citadinos perdidos,
em plena miséria e dores que atraiçoam
o seu ser criança, e atraiçoam a Luz
que por elas desce. São as crianças
que inventam o silêncio e as palavras
e chamam à água luz e à noite sombra,
e aos frutos chamam o seu único pão.

Que se alimentam da terra, órfãos
das cidades sem ar. Abençoadas
por Vénus, elas são os eleitos, salvos
entre a perdição e o caos. São os benditos
que renovarão os seres que vivem
pelas leis da Natureza. Sob o signo de Vénus
vão reencontrar o amor, para molhar desertos,
a paz, para reflorir janelas vãs,
a vida das criaturas, para a cantarmos.

Outubro de 1997

Fiama Hasse Pais Brandão (n. 1938 - m. 2007), in Cenas Vivas (2000). «No centro da obra de Fiama, irradiando uma força poderosa que encontra a sua medida nas realizações mais elevadas da literatura portuguesa da segunda metade do século XX, está evidentemente a sua poesia» (António Guerreiro, in Expresso, Novembro de 2005). «Desde sempre identificada com o grupo de Poesia 61, não obstante dois livros anteriores - "Em Cada Pedra um Voo Imóvel", de 1958, que lhe valeu o Prémio Adolfo Casais Monteiro, e "O Aquário", de 1959, ambos expurgados da obra canónica -, Fiama construiu uma obra que associa poesia, ficção, dramaturgia e ensaio. Em 1991, quando a integral de poesia pela primeira vez se acolheu sob o signo de "Obra Breve", sublinhei o modo hierático de um discursivismo alheio a derrames líricos, resultado de um raciocínio analítico frio e determinado que tinha como consequência um "discursivismo outro" (cf. revista LER, n.º 18, Primavera de 1992). Mantenho o juízo, apesar de Fiama ter entretanto publicado quatro obras sem as quais a Obra teria diferente enfoque» (Eduardo Pitta, in Público, Julho de 2006). «Logo de início, associa, em verso, a precisão seca do traço descritivo com a própria emergência do texto;a seguir, num permanente renovo conjunto de percepções e de memórias, que entretanto se inserem com mestria crescente numa espécie de espaço-tempo, com estatutos e limiares incertos, para o que é ou se sente» (A. J. Saraiva, Óscar Lopes, in História da Literatura Portuguesa).

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