Aí está a primeira tragédia do ano: o jornal satírico
francês Charlie Hebdo foi alvo de um atentado, tendo sido assassinadas 12
pessoas. Entre as vítimas, contam-se oito jornalistas. Cartunistas famosos como
Cabu e Wolinski morreram no campo de honra, ao lado dos camaradas Charb,
Honoré, Tignous. Diz quem sabe que eram referências da sátira contemporânea. Os
fanáticos que levaram a cabo o atentado gritaram por Allah. Ninguém os percebe,
excepto, talvez, palermas como o da ilustração ao lado. Recuso-me a fazer caso
do que diz o guru da superficialidade, mas não posso deixar de sublinhar o
quanta falta faz um fortificante cerebral a gente que pensa como ele e
manifesta apreço por tão desprezíveis considerações. Gostos e partilhas
demonstram o quanto ainda há a fazer neste mundo livre que é o nosso em prol da
liberdade. O que ontem atacaram em Paris não foi sequer a liberdade de
expressão, sempre discutível e polémica e paradoxal. O que ontem foi atacado
foi a liberdade. Ponto final. Todos caem hoje em cima do pobre Gustavo, um
palerma visível. Alguns caem também em cima da incontinente Ana Gomes, que
muito histericamente bufou logo pela manhã a teoria de que as políticas de
austeridade alimentam o terrorismo. É possível. Mas se hoje os descomedidos são os bobos da
festa, amanhã serão novamente estrelas da opinião pop. Assim vamos vivendo sem
nos darmos conta de como atentamos também nós contra os fundamentos da
liberdade, porque esta não existe nem no sangradouro da barbárie nem nos
charcos da indiferença. É uma semente que os desenhos radicais do Charlie Hebdo
regavam, como toda a criação, mais ou menos ofensiva, mais ou menos insultuosa,
mais ou menos libertária. Nesses oásis devemos repousar, desses jardins devemos
cuidar, se quisermos uma sociedade menos árida do que aquela que o extremismo
reivindica em nome de deuses que só os seus fiéis zeladores compreendem.
Obrigado, meu deus, por me teres feito ateu. Eu, que não só apenas acreditaria
num deus que dançasse como jamais aceitarei num deus que não ria. Sobretudo que
não ria de si próprio, a mais sábia e sagrada, assim me parece, das
composturas. Nada há de minimamente respeitável no que defendem os extremistas
do autodenominado Estado Islâmico, assim como nada havia de respeitável na
Santa Inquisição, assim como nunca houve nada de respeitável na escravatura,
assim como nada há de respeitável no nazismo. Por isso combatemos acerrimamente
esses mundos ausentes de valores humanistas, por isso desprezamos e
desrespeitamos esses universos humanos sem valor. Nenhum valor digno de nota
existe nesses mundos, nada há aí que mereça respeito ou consideração, nada há
aí que mereça o mínimo cuidado, a mínima cautela, porque aí não há cultura, há
barbárie, há decapitações de pessoas livres, há a decapitação da liberdade. Pouco disto tem que ver com o Islão, sendo também vítimas deste fanatismo religioso
todos os muçulmanos para quem o amor é a mais sagrada das palavras. Nenhum
cartoon, por mais violento que seja, desrespeita o seu alvo, nunca tanto quanto
esse alvo se desrespeita a si próprio se julgar que as soluções para os
problemas do mundo passam por andar de rosto tapado a assassinar brutalmente criaturas
humanas. Charb, Honoré, Tignous, Cabu, Wolinski andavam de rosto descoberto e tinham
as mãos sujas de tinta, não as tinham sujas de sangue humano. Seria injusto
transformá-los numa caricatura do mundo livre, pois estão hoje para nós como
para o Renascimento estiveram todos os intelectuais torturados, assassinados,
condenados à morte pela Santa Madre Igreja. Que uma qualquer concepção de Deus
se esconda por detrás destes ódios humanos não me é indiferente, ainda que
julgue não estar tanto o problema na ideia de Deus como está na ideia que
algumas bestas humanas fazem d’Ele.
8 comentários:
«Que uma qualquer concepção de Deus se esconda por detrás destes ódios humanos não me é indiferente, ainda que julgue não estar tanto o problema na ideia de Deus como está na ideia que algumas bestas humanas fazem d’Ele.»
Também o digo, Henrique.
Fonix Henrique, acertas sempre no nervo!
A Liberdade também pode contemplar o acto de matar.
Só anonimamente alguém pode afirmar uma patacoada dessas. Publico-lhe este para que fique registado, mas muito livremente digo-lhe já que nesta casa não volta a cagar sentenças dessas.
Só mais esta, então: A Liberdade é um conceito perigoso. Espero que fique registado.
Grande texto, Henrique.
Um grande, grande abraço de fraternidade, Henrique. Reconheço-me na tua humanidade.
A estupidez, não a liberdade, é que é perigosa.
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