Quando Dante, no vigésimo oitavo canto de O Inferno, descreve o profeta Maomé cortado aos pedacinhos, para a eternidade, por um diabo poderosamente armado, figurando entre os semeadores de discórdia e os sectários, serve-se certamente dos clichés islamófobos da sua época sem lhes acrescentar a menor novidade proveniente da sua própria inspiração - se nos abstrairmos do esquema típico da commedia, o da correspondência entre a arte do sacrilégio e o modo da punição infernal. O discurso do Papa Bento XVI em Ratisbona, em Setembro de 2006, forneceu outro testemunho da islamofobia cristã do início do século XV. Nele citava a frase - ou melhor, o suspiro, do infeliz imperador bizantino Manuel II, o Paleólogo (cuja filha já se encontrava no harém do inimigo que sitiava Bizâncio), segundo a qual o profeta Maomé só acrescentara coisas malvadas e inumanas à revelação cristã.
Peter Sloterdijk, in A Loucura de Deus - Do combate dos três monoteísmos, trad. Carlos Correia Monteiro de Oliveira, Relógio d'Água, Janeiro de 2009, p. 42.
(...)
Nem pipa a que aduela e fundo fuja,
como um que vi, assim se desmedula,
oco do mento até onde se ruja:
entre as pernas a tripa pende e pula;
a fressura se vê e o triste saco
que merda faz daquilo que se engula.
Enquanto tudo nele a olhar estaco,
olhou-me e com as mãos se abriu o peito
dizendo: «Vê como eu me desempaco!
vê como Maomé está desfeito!
À minha frente vai chorando Ali,
fendido, do toutiço ao mento, o aspeito.
E os outros que tu vês todos aqui,
que hão semeado escândalos e cisma
lá na vida, fendidos vês assi.
Há um diabo que atrás de nós nos crisma
tão cruelmente ao talhe de uma espada,
e nesta resma novamente abisma,
quando voltamos da dolente estrada;
e as chagas voltam a fechar escusas
antes de se enfrentar outra estocada.
Mas tu quem és que as ventas ora cruzas
talvez no escolho a retardar a pena
julgada já a tudo quanto acusas?»
«Nem morte lhe chegou, nem o condena
a culpa», diz meu mestre, «a atormentá-lo;
mas para dar-lhe experiência plena,
a mim, que morto sou, convém levá-lo
pelos baixos do inferno em cada giro: e o
que digo vero é como eu te falo.»
Um cento ou mais, isto de ouvir e o
seu passo de deter no fosso a olhar-me:
no espanto já se esquecem do martírio.
«Pois diz a Frei Dolcin então que se arme,
tu que verás talvez o sol em breve,
se tão cedo não quer acompanhar-me,
de vitualha tal, que ao cerco a neve
ao Novarês vitória assim não dê,
que de outro modo não seria leve.»
Depois que a ir-se levantou um pé,
disse-me esta palavra, e em terra a sola
pousou de novo, e foi-se Maomé.
(...)
Notas:
Ali: genro de Maomé.
Frei Dolcino Tornielli, de Novara, chefe da seita herética dos Apóstolos, ou Irmãos Apostólicos. Queimado vivo em 1307.
O Novarês: o bispo de Novara, que comandou a cruzada.
Dante Alighieri, in A Divina Comédia, trad. Vasco Graça Moura, Bertrand Editora, 2.ª edição, Março de 1996, p. 253.
Sem comentários:
Enviar um comentário