Quantas pessoas conheciam em Portugal o Charlie Hebdo?
Quantas, das que agora apontam o dedo à blasfémia praticada pelo jornal
satírico, já tinham ouvido falar do Charlie Hebdo? Quantas alguma vez terão
tido nas mãos um número do Charlie Hebdo? Eu nunca tive. E se o visse nas
bancas, não compraria. Nunca na vida me recordo de ter comprado um jornal
satírico. Nem sequer sou especial fã de cartunes, também raramente leio banda desenhada.
Irrita, porém, deparar com tanta gente dedicada à denúncia e à crítica do
malogrado jornal.
Os argumentos são dos mais rebuscados, vão desde a
constatação de uma implicação sistemática com o islamismo a acusações de
islamofobia, esgaravatam o passado do jornal com acusações de práticas pouco
democráticas no seio da redacção, para não falar da banaldiade “estavam a
pedi-las”. As pessoas confundem tudo. A qualidade do jornal não interessa para
nada neste contexto.
Imaginemos a inversa. Imaginemos que era um jornal de
fundamentalistas islâmicos a ser atacado por um grupo de católicos radicais. Imaginemos
que Anders Behring Breivik tinha, por absurdo, encontrado uma ilha onde estavam
acampados alguns jovens fundamentalistas islâmicos e desatava a disparar sobre tudo
e todos. Seria na mesma um acto terrorista bárbaro, indecente, indesculpável,
injustificável.
Por mais voltas que se dê a esta questão, não está em causa o
que as vítimas fizeram em vida. O que deve merecer o nosso repúdio é que alguém
se julgue no direito de acabar com vidas humanas desta forma, seja em Paris, Utøya,
Nova Iorque, Chibok, Madrid, Kobani, Londres ou Gaza.
Através de comentários que entretanto me pediram para não publicar, chego também a este texto assinado
por António Barahona. É um texto muito bonito, tão bonito que podia ter sido
escrito por um qualquer católico ortodoxo. Na Rússia, Putin pensa como
Barahona. É por isso que quer proibir propaganda homossexual. Cada qual com os
seus deuses, obviamente. Mas é também um texto que satiriza os meus sentimentos mais profundos, não me deixando, contudo, com a mínima vontade de disparar um tiro nas fuças do seu autor.
Assim sendo, a nossa liberdade de expressão termina
onde começa o ridículo das religiões. Melhor: podemos expressar-nos livremente
excepto para pôr a ridículo a religião. Para a fogueira com o Anticristo de
Nietzsche e com o Elogio da Loucura de Erasmo e com a Utopia de Thomas More… A
sátira não pode ser aplicada à religião, defende o eminente poeta no alto da
sua sabedoria. Pobres de nós, os infiéis e ateus, que a todo o momento somos
satirizados pelas religiões.
Há mais de três séculos a arder no Inferno,
Gregório de Matos foi um lacaio do diabo. Goethe, à sua maneira, foi outro
lacaio do diabo. Ou então estamos todos errados e o alvo destas sátiras não
eram as religiões elas mesmas mas o entendimento que delas é feito pelos
homens, por certos homens. Por exemplo, por homens como o soldado da paz na
imagem ao alto. Satirizam-se padres, bispos, cristos. Satirizam-se, imagine-se,
políticos. Satirizam-se homens e mulheres, mas não toquemos nos sentimentos
mais íntimos e sagrados de milhões de crentes.
Podemos tocar nos sentimentos
mais ou menos íntimos? E se forem sentimentos de milhares de crentes? Podemos
satirizar a IURD? E a seita Heaven’s Gate, podemos satirizar? E, já agora, essa
religião do povo, esse ópio que dá pelo nome de futebol, podemos satirizar? Ou
também aí não devemos tocar nos sentimentos mais íntimos e sagrados dos
crentes?
Os indivíduos a quem Barahona chama guerreiros e mártires, esses e os
do Boko Haram que andam a raptar crianças e a matar milhares de infiéis, esses
e os do ISIS que decapitam os ímpios de Kobani, esses e os que se projectam contra
altas torres no centro de Nova Iorque ou se fazem explodir na Tchetchénia,
esses e o tal guerreiro da paz na foto ao alto, têm mais direito a rir do que
eu? São íntimas as minhas convicções ateias, tão íntimas que vão resistindo
como o mais resistente dos materiais a toda a gargalhada sagrada que as
anedotas satíricas da Bíblia, do Alcorão, da Torá, do Livro dos Mortos, do
Bhagavad-Guitá, dos Upanishads, têm para arremessar contra a minha consciência.
Eu, desgraçado cidadão português de mãos em concha, que em pleno século XXI e
depois de um dia de trabalho ainda tenho que aturar a blasfémia de um texto onde
a voz do muezzin se assemelha ao riso das hienas no mercado das emoções.
9 comentários:
É inacreditável a quantidade e o calibre das barbaridades que alguém, supostamente informado, consegue debitar num texto. Num outro qualquer seriam "boutades" inconsequentes, neste senhor as coisas ganham contornos diferentes. Ou não, que o direito à inimputabilidade ele veio buscar ao ocidente que agora quer civilizar. A nós, perante casos assim, resta-nos o múnus da condescendência.
Mas, pelo sim, pelo não, eu,
em relação à "minha liberdade vigiada", não deixo as barbas dele de molho.
Um texto destes na Arábia Saudita dava direito a umas centenas de chibatadas.
Excelente. Usando expressão corrente aqui no Brasil :: "tamo junto".
Isto é mais ou menos como os pirómanos e as notícias sobre os incêndios que ateiam. O melhor é nem sequer lhes dar palco.
http://avidanumagoa.blogspot.com.br/2015/01/para-resolver-questao-do.html
Tenho ali uns livros que comprei do Sr. António Barahona, todavia agora só me ocorre:
BENJAMIN PÉRET
"Ó grande espírito santo da merda
virgem enrabada em todos os altares
o meu pichel transborda de água benta
Embebe nela o pissalho antes de mo enterrares
Conas de nenúfar crescem nos benzedoiros
Vá vai apalpá-las antes de me enrabares
Cristo não tinha picha o infeliz
e por isso o cricificaram
Corre ó esporra em nossa matriz"
"Os Tomates Enlatados", Antígona.
(...) e num último sopro de vida, o tio do homem-aranha sussurrou:
"Não há liberdade sem autoridade, nem autoridade sem liberdade."
Manuela, belo naco de poesia.
Ora aí está, um belo naco de poesia satírio. Com esse poema e a declaração de princípios do outro blogue, se eu fosse cristão, já teria um belo motivo para metralhar esse frívolo poeta. E eram bem dadas.
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