domingo, 15 de fevereiro de 2015

CISCO

Li recentemente um artigo onde alguns críticos de poesia norte-americanos lamentavam a incapacidade das novas gerações para produzirem obras tão relevantes quanto as que herdámos do passado, apontando a falta de ambição como razão principal para uma suposta decadência da poesia. Verdade seja dita que esta decadência não é de agora, vem sendo anunciada, pelo menos, desde o fim das vanguardas. Perante a sensação, mais ou menos justificável, de que tudo foi dito e feito, restam-nos rasgos de eficácia que reduzem a linguagem poética a exercícios de estilo disseminados em cursos de escrita criativa. Com grande parte da produção poética contemporânea instalada nos meios académicos, torna-se difícil destrinçar o meramente decorativo do essencial. Tal discurso, catastrofista no diagnóstico e, talvez por isso, lacónico na receita, terá a sua razoabilidade, extensível a outras realidades que não apenas a norte-americana. E, já agora, que não apenas a poética. Como o “mercado” (atente-se o leitor às aspas) por cá tem as suas limitações, assumimos como natural a proliferação de propostas, de práticas expressivas, de vozes, de linguagens, tanto quanto damos por adquirido a análise tantas vezes recorrente que assume uma espécie de languidez como motor lírico por excelência. A poesia não importa, assumiram os nossos poetas. Mas importa ir escrevendo e publicando, mesmo que escrevendo como os outros escrevem, mesmo que colocando o poético ao nível do anedótico, o lirismo ao nível da confissão, a reflexão ao nível da narrativa quotidiana, o relevante ao nível do fait divers, porque também a poesia está dentro do mundo e os poetas não são impermeáveis aos apelos da sedução, venha ela pelos atalhos do humor, do sentimento ou da derisão sensacionalista da linguagem. Como por cá ninguém almeja um público, porque o não há, seria talvez natural que as preocupações com o que se vai escrevendo estivessem menos focadas em seduzir do que em oferecer ao leitor a honestidade de um prisma. Com isto quero dizer que, apesar da multiplicação de propostas, raramente somos confrontados com uma voz veiculadora dessa honestidade. Cisco (Mariposa Azual, Dezembro de 2014), de Elisabete Marques (n. ?), é uma boa surpresa que seria injusto passar despercebida, na medida em que ao mesmo tempo que indicia, até pela palavra do título, uma insistência na desafectação da poesia, reclama também para esta uma essencialidade escondida na linguagem depurada e na disposição cuidadosa de cada uma das palavras que compõem o espaço exíguo do poema. Os três conjuntos do livro (A Nódoa na Manga, Porta-Enxerto e Grãos Exemplares) oferecem-nos poemas breves onde a vida na cidade, com suas cenas quotidianas retratadas frame a frame, é reproduzida a partir do isolamento do pormenor, cabendo nos quadros a partilha do tempo e do espaço nos transportes públicos (metro, autocarro, táxi), as «horas em filas burocráticas» (p. 14), memórias desconexas, percepções domésticas não totalmente alheias à condição feminina do sujeito poético: «Infra-fino. Três dentes / de leão em copo de plástico, / para fazer Abril no quarto escuro. Lembrar // a exaltação, o mínimo, é ainda fitar / o negro dos corvos e do fumo junto ao / balanço da ramagem aberta. Minha janela // pretendendo paisagem. A tarde cai lenta / sobre os objectos; livros amarelados / por segunda mão, um dedal, uma agulha» (p. 30). Impossível não notar a presença de Luiza Neto Jorge nesta “exaltação do mínimo”, de resto recorrente na poesia de Elisabete Marques. O último conjunto do livro é especialmente sintomático do olhar microscópico, com suas formigas e migalhas, pormenores e quase nadas ocupando o poema sob uma forma quase aforística: «Crianças bebem o plasma do ecrã. / No intervalo, procuram portátil / consolo, um inédito berlinde» (p. 60). Os tempos modernos não estão arredados desta minuciosidade quase oriental, por assim dizer. Notam-se tanto quando a paisagem o denuncia como quando uma espécie de privação do mundo natural, ou apartamento da natureza, compele o poema ao resgate dos elementos que a possam tornar mais próxima, nem que esses elementos sejam, como sucede logo no primeiro poema, os «frutos com etiqueta» ou o raio de sol que penetra o território doméstico. Há dois poemas (pp. 16 e 35) onde este resgate resulta especialmente feliz. E com eles termino:

GUIAS DE AVES:
Ainda há
lugar para pássaros.

No interior das casas, eles pousam explicativos
do nada feito de suas asas.

Largam por isso penugem e pigmento
sobre madeiras baratas, e extenuam
a íntima velocidade
que lhes sobe ao bico como um incêndio.


***

CONTE-SE, POR EXEMPLO, O CONTACTO
entre as fibras do músculo e a vibração
 
da tesoura aparando o desalinho dos canteiros.
A sede calada à força de cerveja barata, pode
o homem inventar forma vegetal, e exultar

por crer existir
acordo com a natureza ali confinada.

9 comentários:

Jorge Melícias disse...

Alguns de nós leram o artigo a que aqui aludes. Uns concordarão mais, outros menos. Mas esse texto marca uma posição clara (programática ou não), relativamente àquilo que na visão dos seus autores resulta como o empobrecimento da poesia contemporânea. O facto de o artigo em questão se referir à realidade norte-americana parece-me uma questão acessória, podendo-se, com a maior facilidade, extrapolá-la para outras latitudes, mormente a portuguesa. Mas qual o ponto deste teu desabafo? O que é que com o exemplo do livro citado procuras aclarar? O que os outros chamam de "falta de ambição" e que tu, eufemisticamente, apodas de "desafectação"? Ou será que encontraste neste exemplo o exemplo acabado da tal "essencialidade" de que, segundo eles, somos órfãos?

Palavra de honra: não sei se o teu raciocínio é apenas inconsequente ou se é algo de mais grave.

hmbf disse...

Penso que os críticos são pessoas ansiosas. A poesia que está a ser feita hoje há-de, no futuro, ter o seu lugar tal como a do passado tem hoje lugar no nosso. Se formos ao caso português mais recente, poderás reparar como no tempo de Pessoa a mediocridade reinava. Quantos anos foram precisos para desenterrar pessoa, uma obra que ainda hoje está a ser feita? Este livro é um entre muitos dos que se publicam hoje, dele podemos esperar apenas que nos disponibilize boa poesia. É o que faz. Se estamos na presença de uma poeta grandiosa, o tempo o dirá. Não serei eu a adivinhá-lo nem a profetiza-lo. Mas estou certo de que enquanto leitor de poesia posso viver despreocupado com as obras grandiosas desses génios que a academia consagra. Já agora, aproveito para aclarar algo mais pessoal (suponho que não seja difícil para quem me leia percebê-lo, mas enfim...): não sou particularmente sensível ao cânone e aos endeusamentos, levados a cabo pelas pessoas que nas universidade orientam teses de mestrado e de doutoramento, de autores por demais conhecidos. A minha curiosidade é sempre maior sobre o que por essa gente preocupada com escalas, medidas e futuros, varre para debaixo do tapete.

Jorge Melícias disse...

O problema é que o "Waste land"
é, grosso modo, contemporâneo de Pessoa. Assim como os "Cantos" do Pound ou o Anabase do Perse. Não me parece que seja a esse intervalo temporal que os autores do artigo se refiram. Ou fá-lo-ão precisamente como contraponto à contemporaneidade que criticam. Ansiosos ou não não me parece descabido o que defendem. Ou tu não vês qualquer tipo de decréscimo qualitativo naquilo que, no que à poesia diz respeito, se vai fazendo hoje em dia. Culpe-se o auto-imposto facilitismo, a falta de ambição escudada num mediatismo acrítico ou, pura e simplesmente, a democratização dos meios com tudo o que de pernicioso daí advêm...

Não se trata de vinculação ao cânone a) ou b) mas do teu próprio cânone (assim mesmo, sem aspas) enquanto leitor de poesia. E é a essa triagem, assente no teu próprio discernimento (como a minha estará escorada no meu) que eu pergunto: não vês qualquer tipo de abastardamento?

hmbf disse...

Jorge, eu também não disse que me parece descabido. Pelo menos totalmente descabido. Há qualquer coisa de verdade no que dizem, assim como nas lamentações de um elemento da Academia Sueca sobre as "vidas desinteressantes" dos escritores contemporâneos. No entanto, julgo de ser algo curta uma vista sobre a contemporaneidade que pretenda julgá-la com os filtros do tempo. Não nos é possível hoje vislumbrar as grandes obras porque elas só se mostrarão no futuro, como resultado de um trabalho ao longo da vida que vai deixando as suas peças. Num país como o nosso, parece-me ainda mais incorrecto tal interpretação. Herberto Helder não é grande? E ainda está vivo e a publicar, porra. Calma. Eu acho que termos tido um século com Pessoa, Cesariny, Ruy Belo, Herberto... é um luxo! Quanto ao decréscimo qualitativo, ele só é mais visível porque se escreve muito mais, porque se publica muito mais e porque nós não vivemos em 1900 para poder apontar o decréscimo qualitativo que à época também era uma evidência para certos críticos. Há muita coisa a acontecer hoje em dia, um sufoco de publicações, toda a gente escreve, muita gente publica. Qualquer coisa há-de ficar disto no futuro. Respondendo à tua pergunta: sim, vejo abastardamento e já o escrevi e publiquei. É possível que ainda o venha a fazer de outra forma. Mas esse abastardamento que vejo não me impede de aqui e acolá ir espreitando propostas que me parecem honestas e, mais importante, poeticamente estimulantes.

Cuca, a Pirata disse...

A mim parece-me que a poesia contemporânea está de boa saúde e recomenda-se.
Claro que a dispersão gerada pela quantidade dificulta o surgimento das "vacas sagradas", mas até isso pode ser positivo.
Para além do mais, incomoda-me tremendamente esse mau hábito de olhar para o passado como o éden perdido.

Jorge Melícias disse...

O que dizes faz todo o sentido, Henrique, e não serei eu a refutá-lo, mas creio que a questão tem outros contornos. Talvez me engane redondamente e o tempo me prove errado, mas acredito que o verdadeiro móbil da questão reside mais fundo, não no afunilamento da visão de que necessariamente padeço (porque, como bem colocas, o tempo presente não é, definitivamente, o melhor dos ângulos para aferir destas coisas) mas na natureza do próprio tempo que vivemos.
Não te digo que somos todos mais estúpidos agora, digo-te sim que andamos todos estupidamente fascinados com o facilitismo que marca, de uma forma indelével, esta época.
Serão muitas as razões para esse facilitismo se ter tornado norma (e aqui a democratização dos meios constitui-se como apenas mais um factor, importante, sem dúvida, mas mais um), mas a verdade, parece-me, é que a preguiça ou a "falta de ambição" por parte de quem escreve (muito alicerçada na preguiça e "falta de ambição" pela parte de quem lê) não é uma parte desdenhável quando se aborda este tema. E em relação a isso não me parece que as dioptrias históricas se sustentem como qualquer tipo de contraponto.

Cuca, a Pirata disse...

É preciso lembrar que nos séculos passados não havia mais nem melhor público, considerando que a iliteracia era ainda maior.

Jorge Melícias disse...

Como em quase tudo na vida não é uma questão de quantidade mas de qualidade. Se partirmos do princípio não muito descabido que cada leitor de poesia é um poeta em "potência", assumindo-se ou não como tal, a coisa torna-se ainda mais perniciosa. Num mundo ideal leitores exigentes de poesia tenderiam a ser menos despudorados quando se trata de editar "n'importe quoi". A realidade prova-me errado, mas isso não invalida a justeza da premissa. A diferença de hoje para ontem reside apenas assumpção desse despudor.

hmbf disse...

Neste aspecto tendo a concordar com o Jorge. Mais leitores não significa melhores leitores. O "público" da literatura não é diferente daquele que observamos nos concertos a olhar para o palco através do monitor do tablet erguido. É verdade que menos iliteracia tende a resultar em mais leitores e mais escritores, sendo de esperar que surjam, igualmente, mais propostas estimulantes. Mas não me parece que exista uma relação directa entre a quantidade e a qualidade. Na revisão que tenho vindo a fazer aqui do séc. XX português espanta-me tanto uma como outra. Temos poetas muito bons que estão muito esquecidos. Isso é um luxo.