sexta-feira, 13 de março de 2015

DOIS LIVROS DE POEMAS

Personalidade perturbada e perturbante, não é por acaso que o poeta Robert Lowell (n. 1917 – m. 1977) surge mencionado nas badanas dos livros Última Semana, de Hugo Williams (n. 1942), e 77 Oníricas (Tinta-da-China, Novembro de 2014), de John Berryman (n. 1914 – m. 1972). Apesar das diferenças evidentes, as vozes poéticas de Hugo Williams e John Berryman convergem no sentido do biografismo praticado por Lowell. A influência exercida pelo autor de Land of Unlikeness (1944) durante a década de 1960, então o mais conhecido e celebrado dos poetas norte-americanos, reflecte-se tanto no britânico Hugo Williams, estreado em 1965 com Symptoms of Loss: Poems, como nas dream songs de Berryman, cujo primeiro capítulo foi, precisamente, as 77 Dream Songs (1964) agora extraordinariamente mudadas para português por Daniel Jonas. Uma mesma fonte, por assim dizer, produz resultados bastante diversos. Comecemos pela antologia de Williams seleccionada e traduzida por Pedro Mexia. São praticamente cinquenta anos de produção poética revistos numa recolha onde salta à vista a solidez do universo doméstico, investido amiúde por imagens sucintas arguciosamente ocultadoras do sentido. Parecendo simples, estes poemas onde a família, mormente a figura paterna, está omnipresente retratam instantes biográficos sem sobre eles exercerem análises críticas. Daí que aparentem uma frieza despojadora de sentimento e emotividade, embora nem sempre assim seja. O primeiro poema do livro, a título de exemplo, refere-se a uma chave cujo realismo nos transporta súbita e inesperadamente para uma experiência confessional de índole psicanalítica: «Pressiono a minha unha / contra a extremidade dentada e percebo / a necessidade de entender em Braille / a minha antítese, ou aquilo que me / humilha» (p. 7). Filho dos actores Hugh Williams e Margaret Vyner, o poeta encena em muitos dos seus poemas memórias familiares. Ler este livro é, em parte, como folhear um álbum de fotografias legendadas por versos que rematam talvez uma tentativa de autoconhecimento através da compreensão das origens. Lamentos, detalhes nostálgicos, simples apontamentos afectuosos, conferem ao presente uma espessura transitória povoada de vazios e de fantasmas:
 
ÚLTIMA SEMANA
 
Ele nunca tirava a maquilhagem
nos últimos anos, «poupa-se tempo»,
Leichner 5 e 9 para cenas de interior,
uns toques de vermelho no canto dos olhos.
«Uma palavra de elogio para o Velho Cocheiro»,
escreveu a Plays and Players.
«Só está em cena nos últimos cinco minutos,
todo molhado, pobre homem,
mas torna toda aquela história fantástica
muito verídica e patética…»
Ele lia isto alto, para si mesmo,
para se lembrar de quem era.

A namorada tinha metade da idade dele,
e pensava que ele era o protagonista.
Ele julgava que ela era virgem.
«Eu sou como o elefante sem tromba do Kipling»,
disse-me ele certa vez, «insaciável de curiosidade».
Depois despejava um balde de água cabeça abaixo
e entrava em palco aos gritos
que a sua amante se tinha afogado.
Gostava de saber para onde foi ele,
porque se esqueceu da caixa de maquilhagem
e do cabide com um monograma
que a gerência lhe ofereceu.
 
Radicalmente distinta é a linguagem praticada por John Berryman, tingida de uma expressividade delirante e lunática, copiada das ruas mas ceifada por elipses que aproximam alguns poemas de um hermetismo quase indecifrável. “Obra contínua”, as oníricas de Berryman conheceram neste primeiro acto uma invejável aclamação. O livro está organizado em três secções com cerca de 26 poemas compostos por mais ou menos dezoito versos livres, embora frequentemente pautados por rimas internas mais facilmente detectáveis na versão original. Tratando-se de uma edição bilingue, o confronto pode e deve ser feito. Sem desprimor para a excelente e dificílima tradução, há elementos rítmicos e musicais que se perdem na transposição para português. A inclusão de personagens nos poemas mina a confessionalidade, sendo vasta a discussão acerca da identidade do papel principal conferido a um tal Henry. Os humores desta figura atravessam todo o livro. Logo no primeiro poema, Henry amua, alguns versos depois anda mono, cisma, excita-se, surge momentaneamente feliz, espanta-se a si mesmo, tem amigos, mulher e filhos: «O Henry deu-lhe uns calores, fornicou, sentiu-se mal, sobreviveu» (p. 147). Noutras ocasiões, o sujeito poético censura-o, critica-o, caracteriza-o, chama-lhe nomes. Por vezes vêm à tona considerações pessoais, morais, políticas, literárias, gostos e desgostos, diálogos cifrados, ódios de estimação: «Rilke era um idiota» (p. 17), «Ethan Allen era um homem com uma missão» (p. 23), «Kierkegaard queria uma sociedade que se recusasse a ler jornais, / e isso não era, amigos, a sua pior ideia» (p. 121). Quem é este Henry? No prefácio, Daniel Jonas coloca-o nestes termos: «Personagem anómala, defectiva, uma aberração de laivos kafkianos, representando um certo imobilismo, quando não uma resistência à acção, opondo à leitura dos seus actos e motivações um vidro propositadamente difuso e multiplicador, Henry desdobra-se, além do mais, numa tripartição de pessoas, em eu, tu e ele, mimetizando desse modo quer o número de estrofes quer uma trindade esquizóide» (p. 7). Mais fácil será ver nesta personagem um alter ego do autor, conquanto este alter ego subsista ao estilhaçar da identidade que os poemas sugerem. Outra leitura possível, proposta inclusivamente no poema 76, justamente intitulado A Confissão de Henry, é a de neste nome - o mais feio de todos para Berryman - poder ser representado com embriagante desvario a implosão do Eu numa poesia impermeável ao sentimentalismo lírico. Não nos podemos esquecer que estes poemas transportam-nos para uma dimensão onírica, mergulham-nos nesses lugares obscuros da consciência (inconsciente?) onde tudo se confunde e ganha formas estranhas, campo de batalha do ego a confrontar-se com os seus próprios receios, desejos, medos, frustrações e tormentos. Ligadas à realidade por elos referenciais, estas canções vêm do sonho, vêm de um outro universo que não aquele onde o realismo alicerça os seus castelos de beleza. Trata-se, por isso, de uma evocação eminentemente literária com intenções estéticas precisas. Mais do que política ou focada na contemporaneidade norte-americana, como alguém o disse, esta poesia é altamente psicológica, estando também nesse aspecto num cumprimento de onda similar ao que encontrámos em Hugo Williams:
 
74

O Henry odeia o mundo. O que o mundo ao Henry
fez é impensável.
Sem sentir dor,
apunhalou o braço e escreveu uma carta
a explicar a sua péssima experiência
neste mundo.

O velho amarelo, numa túnica
poderia ter feito a diferença, «estas beldades plebeias»,
e chartreuse poderiam ser decisivos

«Quioto, Toledo,
Varanasi — as cidades santas —
e a Cantabrígia da luz difusa não compensam
o, bom, o horror do desamor,
nem a sul de Paris de carro na primavera
para Siena e daí…»

Chamando o Henry à razão, o sombrio Henry
latiu às coisas.
As vivas desilusões dos homens
e as viciosas e adoráveis criancinhas
e as infelizes mulheres, o Henry dominava, o Henry
que provava todos os pedaços secretos da vida.

1 comentário:

bea disse...

Curiosa, a relação entre os três poetas.