Herberto Helder,
Eu nunca tomei uma bica consigo. Nos seculares passeios do nosso adro é difícil tal prestidigitação. É verdade que tenho um certo susto das suas palavras. Deve ser o único português de quem diria tal coisa. As razões são curtas e julgo que se resumem a uma: você escreve assim.
Poucas vezes o enredo de um fio me faz perder entre os seus nós. As meadas grossas são coisas fáceis de jogar nos dedos. Mas aquelas que nem parecem para tecer, que vêm de um torvelinho onde o ar ainda não chegou, abrem um espaço cego onde as crateras confundem a inexperiência do olhar.
Eu tinha, como lhe mandei dizer uma vez, dezasseis anos. Vila Real era um castigo de que ninguém cresce, a menos que dê volta à vida. Havia uma pastelaria diante da Sé. Li aí A Colher na Boca. Você foi culpado de quase tudo. Sabotou a mágoa adolescente de alguns sonetos. A Judite Beatriz de Sousa nem podia imaginar que as aulas de Literatura eram nessa esplanada e não onde ela me dizia as coisas de maior fascínio que começava a ouvir.
É evidente que não se tratava de Nossa Senhora de Fátima. As aparições já haviam começado mais cedo, quase sempre nos intervalos das aulas e com gente que não ia querer ver-me de joelhos. Mal sabiam que não esperavam os desejosos por outra coisa. Mas, lembro-me de vez, quando cheguei às «Musas Cegas» deixei de saber o que fazer com as palavras. Você não devia existir.
Quero dizer, comecei a julgar que escrever era fazer como você, de tal ordem a mudança ou transfiguração foi radical. Foram centenas de poemas, nos anos da Faculdade, em que não havia mais ninguém, nenhuma outra linguagem capaz de ensinamento. Era a peste, o contágio mortal.
Os advérbios de modo, os pronomes possessivos desencadeadores dasmetáforas, o desregramento imaginístico de um onirismo agressivo, a raridade visual ocupavam o centro que tentava a sua capacidade de visão, donde me cresciam as palavras. O desencadeamento da beleza tem destas facas. Atingem um coração desprotegido de saberes. Calcam as poças de terra donde ele julga subir. Andei com os seus poemas por muitos amores, por mais desamores, pelo sequestro de quartos alugados, pela papalvice de muitos professores. Lembro-me que tinha por critério poético para respeitar alguém que gostasse do que você escrevia.
Porque sou do tempo em que você era odiado. Nos primeiros anos dos anos 60 você não era neo-realista e atacava-os. Isto é, não havia foices e martelos escondidos na covardia de algumas imagens que só os da célula ou os mais atentos entendiam. Nem falava das madrugadas futuras. Nem, acima de tudo, cumpria a retórica de sacristia de um alentejo qualquer. A sua cor era o negro, ouvia-o dizer por detrás de muitas frases e um dia, de trombas, no prefácio a Edmundo Bettencourt.
Diziam que você era um idealista. Eu zangava-me, eles não queriam saber. Um dia atiraram-me uma recusa definitiva: você trabalhava na Emissora. Fosse verdade ou mentira, trabalhavam assim. Contavam a qualidade dos versos pelos anos de prisão. Nem deixavam supor que houvesse outras prisões e que você cantava de um suplício onde eles talvez nunca pudessem sofrer.
Alguns deles, de uma bronquidão imbatível, acabaram ministros, secretários e outros cargos. Era vê-los, ainda hoje se vão vendo, embora os mais antigos lhes tivessem recuperado os cadeirotes. Basta olhar para a cara da maioria dessa geração, iguais aos que desalojaram, mais liberaizitos, mas também de olhos moles: ouve-se logo crepitar a roupa interior enxovalhada. De quem haviam de gostar senão dos que faziam palavras prontas para balada?
Fui descobrindo outras razões para estar consigo ou ouvi-lo declarar extremos que eu também sentia. Num questionário do outro Proust, que divertia as minhas tardes de cervejaria, vi que respondia quando quiseram saber o que pensava da Literatura Portuguesa: Agustina Bessa Luís. Mais nada. Isso bastava-me, nesses anos já distantes em que ainda ninguém a queria transformar em possível herdeira do Torga, para me confirmar tudo. Saber caminhar entre os escolhos era uma arte que também eu andava a aprender.
Fui saindo do «pesadelo» da sua escrita a muito custo. Voltei atrás muito devagar, graças a grandes montes de papel rasgado. Primeiro riscava o que lhe fosse semelhante, voltava ao princípio, descobria que não ficava nada. Só quando me despedi de si, consegui perceber que podia tentar com as palavras sons e sentidos que fossem meus.
Não fui só eu, comecei a ver depois. Você é culpado de mais epígonos do que ninguém. Poucos se poderão sentir tão mal ao ler imensos que se lhe seguiram. Gente da minha idade, outros mais novos do que eu, devem a si nunca terem conseguido ser melhores. Também se não fossem de você, valha a verdade, seriam pigmeus de outro. Deve sentir, melhor do que ninguém, a praga que desencadeou à sua volta. Quase cada livro de um novo que surgia, e se ficava só por esse livro, de certeza que lhe causava a zanga de se sentir por lá.
A poesia portuguesa que se lhe seguiu só era interessante quando não estava colada a si. Nenhum poeta português do pós-guerra precisou tanto de se ver fugido. Leia muitos desses que aparecem por aí, entre o pós-surrealista e o pós-beatnik, leia mesmo os que fizeram poesia de comício à custa de banalização de imagens e processos seus e diga-me se não é assim.
Poucos podem ter a honra de ter mais inimigos do que você. Inimigos como eu, a considerá-lo um dos maiores, mas a fazer tudo por causa disso, por o combater naquilo que me leva à escrita. Aliás você é dos poucos que não anda atrás dos mais novos para lhes «sacar» o que de melhor vão conseguindo propor. Inimigos como outros, da geração que o antecedia, mais de raiva, ultrapassados pelo que você fazia, ou na bovina ignorância da sua escrita até terem acordado tarde demais (exceptuo alguns, dentre esses de quem já tenho tentado falar aqui). Inimigos como ainda outros, calados, dos que surgiram consigo nos inícios desses anos 60, ou dos que estavam já na sua linha de escrita, porque sentiam o vazio a fazer-se à volta dos seus pés. Muitos andavam de alma revirada. Eu era muito novo e podia observá-los com eles a julgarem-se impunes. Tinham entrado numa de poema curtinho, tudo bem escolhido e recatado, fácil de ser entendido na Outra Banda. Dizia-me uma delas, que depois deixou crescer os versos: «Tem demasiados violinos a entrarem por demasiadas janelas.» Veja lá o mal que faz aos ansiosos terem que fechar as janelas e, nessa falta de ar, ouvirem os ditos só na grafonola.
Quando penso no um ou dois poetas da minha geração, sei que eles são bons porque não se lhe assemelham, quase tanto como por possuírem uma veemência própria a reivindicar. Quando penso nos da sua geração, penso que são maus porque não atingiram o centro do tempo com a placidez do furacão em torno que você foi. Penso que, dos anos 60, só Ruy Belo pode competir consigo com o fôlego incomparável dos que ganham sem correr. Assim como penso que, dos livros que se seguiram à sua Colher na Boca, só Outro Nome de Gastão Cruz, poucos anos depois, e Crónica de João Miguel Fernandes Jorge, bastantes anos mais tarde, tocaram em algo de profundamente alterante e central entre os mais novos.
A maior homenagem que lhe quero prestar, porém, é esta: só consegui juntar verso para o ar livre quando soube, de certeza certa, que você não estava lá. Esse obscuro lugar, como você diria, tem percentagem de luta contra si. Ficou daí, talvez, esta barreira que nem a sangue sei como resolver: não sei falar de livros seus. Talvez seja esse susto de que falava ao princípio.
Por isso, sobre o seu Photomaton & Vox digo-lhe isto. E só acrescento uma certa surpresa por o ver referir americanos demasiado franceses, e ter lançado um piscar de olho cúmplice a um público fácil ao atirar-lhe com a Patti Smith. Mas que fará tal minúcia à grandeza persistente da sua deriva, isto é, da sua «deambulação»?
E já agora, em roca de algumas das suas magníficas histórias juntadas neste livro, deixe-me contar-lhe uma que li em Otto Jespersen. «Um camponês a quem o padre perguntou que significado tinha para ele a palavra felicidade e que respondeu: qualquer coisa dentro de um porco, mas não sei explicar melhor o que é.»
A moral é: no meio da miséria institucional que cerca a nossa cultura, da prostituição das editoras comerciais e das outras que só se dedicam às obras completas dos vendáveis, desses autores que lhes aceitam fazer o jogo, do desprezo a que a máquina política votou a difusão séria de obras mais significativas ou de autores mais novos para promover a mediocridade dos que se deixam enredar nas suas teias partidárias dominantes — no meio desse «porco» que é o nosso mercado cultural, a maioria das nossas editoras, os programas literários, a «felicidade» é que possam ainda, aqui um, além outro, aparecer livros como o seu. E que existam figuras de recusa exemplar como a sua é.
Joaquim Manuel Magalhães, in Os Dois Crepúsculos - sobre poesia portuguesa actual e outras crónicas, A Regra do Jogo, Julho de 1981, pp. 129-133.
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