terça-feira, 31 de março de 2015

THE BRIDGE

Há muito que a dúvida sobre a possibilidade da poesia ocupa os poetas. Seria um erro julgar que ela surgiu com Adorno depois da II Grande Guerra, da mesma forma que é um erro excluí-la das preocupações centrais que ainda hoje se colocam a muitos autores. A segregação dos poetas na república ideal de Platão também não explica o problema. O filósofo estava parcialmente certo quando responsabilizava os poetas pela invenção de mitos, os quais condenava por serem prejudiciais a uma educação para a verdade. Condenada a poesia, deixou-se-lhe, no entanto, o benefício da dúvida quando se ocupasse de imitar o homem de bem, o homem ideal, o homem bom segundo a terminologia platónica. Não é por acaso que Hart Crane (n. 1899 – m. 1932) cita Platão no último poema do seu mais importante livro, reivindicando para a poesia uma forma de conhecimento que Platão atribuía à música: ritmo. Quis a ironia do destino que The Bridge fosse publicado no ano em que Herberto Helder nasceu, esse ano de 1930 que acolheu do outro lado do Atlântico a voz de um poeta também ele obscuro, também ele órfico, também ele fazedor de mitos, também ele ocupado em viajar no tempo através da linguagem. O corpo de Crane desapareceu prematuramente, diz-se que no alto-mar algures entre o México e Nova Iorque. Era o dia 27 de Abril de 1932, dois anos passados sobre a publicação de um livro visionário. Na introdução à edição que possuo, Waldo Frank informa que o barco estaria 300 milhas a norte de Havana: «He took off his coat, quietly, and leaped». Desapareceu para sempre no imo de uma força natural que os seus poemas cantam convenientemente, usando-a como símbolo de uma unidade onde as fronteiras se apagam. Mas o mar é também esse espaço de ninguém que se intromete entre o velho e o novo mundo, imagem transfiguradora de uma distância ao mesmo tempo geográfica e histórica. The Bridge tem uma estrutura rígida, comparável talvez à Mensagem (1934) do nosso Fernando Pessoa (publicada, aliás, quase na mesma altura). Nele encontramos evocações das figuras históricas centrais da América, do navegador Colombo a Pocahontas, de escritores fundadores da literatura norte-americana, tais como Melville, Whitman ou Poe, aos pioneiros que desbravaram territórios e erigiram uma nova civilização. Uma civilização que, de resto, surge do aniquilamento do passado. No entanto, estas evocações aparecem misturadas num panorama urbano que torna o presente época de saturação e de declínio. A ponte é a estrutura urbana sólida que liga as duas margens, é o ferro (modernidade) sob o qual o rio (tempo) corre imparável na direcção do mar (absoluto). O poeta é quem atravessa a ponte, mas também é quem desce ao inferno quando apanha o metro e se confronta com a multidão, “uma serenata tranquila de sapatos e chapéus-de-chuva, cada olho a prestar atenção ao seu sapato”. Ao contrário de Whitman, Hart Crane não se deixa contaminar pela agitação. Não se entusiasma. Desconfia. Des-confia. Pressente-se nele uma agonia que manifesta ausência de fé, motivada porventura por uma perspectiva de que o tempo assume a forma de um distanciamento do “paraíso perdido” mitológico ou que do futuro podemos esperar apenas o curso da decadência: «This was the Promised Land, and still it is / To the persuasive suburban land agent / In bootleg roadhouses where the gin fizz / Bubbles in time to Hollywood’s new love-nest pageant» (do poema Quaker Hill). É precisamente neste contexto que o poeta se interroga sobre qual dos olhares lhe pode convir mais: o olhar alto do falcão ou o olhar rastejante do verme? Eis a dúvida que atormenta todos os poetas pelo menos desde que Deus mandou o homem dominar a natureza e todas as suas criaturas selvagens. Ora, o poeta é uma criatura selvagem. Como pode ele dominar-se a si próprio? Como pode ele domesticar-se e cumprir o desígnio divino? O grande dilema, a grande contradição, a ambiguidade central do poeta é precisamente esta. Num mundo industrializado, num mundo escravo da tecnologia, no mundo das "servidões", a poesia como que desespera de um novo arco-íris, o arco-íris que Crane coloca, ele próprio, no centro da sua poesia, elo com um sagrado anterior às grandes construções religiosas, aos grandes edifícios tentaculares, anterior à cristalização dos mitos. Thomas A. Vogler diz que Crane viu no problema do poeta um reflexo do problema central da sociedade em que vivemos, e diz muito bem. Esse problema, que os místicos resolvem com experiências de êxtase e visões/iluminações momentâneas, é ainda mais lancinante no poeta des-esperançado. É ainda Waldo Frank quem nos lembra que Crane era um místico num mundo anti-místico, tendo vivido entre o êxtase e a exaustão. Como vimos, resolveu cedo a sua ambivalência. Não sem antes deixar como herança o testemunho da sua deriva: “antífona murmurada na agitação do azul-celeste”.

1 comentário:

Dimitri (F. K!) disse...

Acho que o olhar que mais convém ao poeta é o de fingidor, fingindo a dor, que ele, deverás, sente. Belo post.
poesiaincidente.blospot.com.