José Alberto Oliveira (n. 1952) contava quarenta anos quando
se estreou em livro com Por Alguns Dias (1992). Apesar da colaboração dispersa
por publicações colectivas na década de 1980, foi uma estreia algo tardia se
compararmos com alguns dos seus contemporâneos. Emanuel Jorge Botelho (n. 1950)
publica os Primeiros Poemas em 1978. Manuel Fernando Gonçalves (n. 1951)
aparece m 1985. Jorge de Sousa Braga (n. 1957) em 1980. São apenas três
exemplos, respigados numa mesma geração, de estreias mais precoces. O facto, em
si, não determina nada. Não podemos sequer concluir que a maturação de uma voz garanta coesão ao todo, embora por vezes nos sintamos
tentados a supô-lo. A verdade é que uma mesma atenção ao quotidiano, ligada ao passado
através de reminiscências nem sempre claras nos seus aspectos biográficos,
percorre os poucos livros que este poeta discreto foi publicando na Assírio
& Alvim. A biografia oficial não esconde, porém, alguns detalhes: médico
cardiologista, nasceu em Souto da Casa, no Fundão. A ligação à província não
foi rasurada dos versos, assim como esse pormenor profissional que pesa de modo
fulcral no livro mais recente. Tomemos de exemplo o poema que ofereceu o título
à recolha:
SEM TÍTULO
Quando percebemos que a vida
é um calafrio na imensa apirexia
que a rodeia — quinze lustros graças
à higiene e à penicilina (e ninguém
assegura tratar-nos a febre)
temos de reconhecer como é grande
a nossa malícia — exigir a cada dia
que outro lhe suceda e agradecer
o mal que nos atinge e a desdita
que nos ampara, acordar sem jeito
e adormecer sem mágoa,
como se nada fosse.
A terminologia médica, aqui sublinhada pelo uso da palavra
apirexia, é frequente nos poemas que compõem os dois conjuntos de Como Se Nada
Fosse (Assírio & Alvim, Março de 2015), surgindo enquanto sintoma e diagnóstico
de uma doença sem cura. E essa doença é a passagem do tempo, o envelhecimento,
a proximidade da morte, doença contra a qual a medicina nada pode. Como Se Nada
Fosse é um daqueles livros estigmatizados pela maturidade, livro-balanço no
oitavo estádio eriksiano do desenvolvimento. É um livro desequilibrado. Não
porque os poemas sejam maus na sua generalidade, mas porque enfermam de uma trivialidade
que já pouco tem que ver com a retórica eivada de ironia que pautou alguns dos volumes
anteriores. O poema Jogos Olímpicos, por exemplo, seria pertinente se José
Ricardo Nunes (n. 1964) não tivesse escrito Versos Olímpicos (Deriva, Março de
2009). Portugal resulta débil quando comparado com o homónimo de Jorge Sousa Braga
(n. 1957), para não mencionar a batuta o’neilliana que Oliveira respeita e
convoca. O primeiro conjunto de poemas acaba por se perder em conjecturas sobre
o sentido da vida que pouco mais têm a sugerir do que sentido nenhum, mesmo quando
contaminados pelo «humor linfático» (p. 14) de uma auto-crítica anódina. Apesar
da palavra vida ser das que mais se repete, é a morte quem implicitamente se
impõe. Torna-se claro que nem tudo o que mais se mostra é o que mais se vê,
respondendo-se à tomada de consciência com as mãos nos bolsos e um encolher de
ombros. A questão que podemos colocar é se tamanha simplificação da existência
justifica o esforço, não só o de nos mantermos vivos como o de, ainda por cima,
escrevermos poemas sobre o assunto. O discurso da inutilidade e da
transitoriedade pode julgar supérflua a vida, a sabedoria dos livros, a ciência
— conferir Dias de 71 —, mas não resolve o paradoxo do esforço nem, por
consequência, o enigma da existência. O melhor de Como Se Nada Fosse sobrevém
noutras latências:
EVITAR:
a tentação de ser o primeiro,
a não ser que haja batota,
a crença em que ser o último é destino,
ou que, salvo pela campainha,
deveria viver-se em conformidade
com ela; a nostalgia:
as árias do passado tocadas
na mesma sanfona, agora temperada
pelo esquecimento; funâmbulos
com vocação para chorar,
amigos que a tarde desaconselha
ou a conversa desiste; aceitar,
como benévolas as virtudes do Capital;
apostar que a miséria dos pobres
é preferível á opulência
dos ricos e que há maneiras
de remediar; cumprir a marcação
de consultas que garantam
morrer saudável; a piedade,
a contrição, o pecado original;
qualquer ajuntamento que pareça
uma igreja e se tal
for impossível, cantar
na missa; os sinais de trânsito,
a benevolência da polícia, gatos
que se enroscam nas pernas,
a descoberta de livros por ler
na traseira das estantes, a ambição
serôdia de uma carreira de pianista
e da falta que os aplausos
fizeram; cães que rosnam.
A listagem de defeitos é também um inventário de virtudes,
ao jeito de wish list enviesada. Mas é neste tom derisório, com inclinação
aforística, que a poesia de José Alberto Oliveira mais cativa. Talvez tal
aconteça por nestes instantes o mundo em volta do eu aparecer mais do que o
próprio eu, evitando-se desse modo aquele lirismo indolente que enfada mesmo
quando bem escrito. O olhar sobre o outro, sobre a situação, não deixa de invocar
o passado nem enjeita a experiência pessoal, podendo também aí a morte ser um
axioma sem corolário (p. 72) e a felicidade um solecismo (p. 67), mas tudo se
torna mais estimulante por ser menos perdulário. Talvez o tão buscado sentido
da vida esteja nessa denúncia desgovernada do que a torna inoperante, monótona,
hostil, desagradável. Quanto ao que sobra, a gente já sabe: é a busca de um
consolo impossível de satisfazer. E não são necessários sessenta anos para o
concluir. Ou são?
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