A vida está cada vez mais cara
no meu tempo a vida
era mais em conta
fazia menos calor
as cidades não mudavam de lugar
corria uma brisa, como uma vassoura.
O fruto, um autómato surpreendido.
Desprendeu-se da casca, que viu?
Um autocarro, um avião, um submarino.
Os frutos frios por fora
são por dentro aquecidos a electricidade.
Os frutos davam frutos, flores, brinquedos.
No meu tempo o rio corria limpo
como um corredor novo
nadávamos nus
uns pelo meio dos outros
extraíamos um amante do vulcão mais próximo.
A um dos meus o mais novo
o mais próximo da sua idade
matou-o o fumo!
Vivia-se até à última.
A vida era mais em conta; depois
derramaram-se histórias sobre mim
os olhos de Buda destilavam
penicilina, eram o que se chama uns olhos
divinos.
Nunca mais quero animais
em casa. Morriam os animais
comprava-se veneno, matava-se gente.
Muitos amantes dormindo sobre a lava.
Morríamos em ilhas separadas por
um cordão de rios ininterruptos.
Nem tínhamos idade para ser crianças num
continente.
Havia no meu tempo fábricas
sumptuosas. Onde se fabricava uma constelação
exacta e limpa, um amor sumptuoso e seus afluentes,
e ínfimas máquinas purgatórias.
Fabricava-se mais e melhor que hoje.
Não há respeito por ninguém;
por exemplo o diamante
não tem a utilidade de uma jóia:
é só um diamante (para um asceta)
só um dia amante (para um suicida).
Com uma jóia, sim, compra-se o mundo.
No meu tempo mal se via a terra
às escuras. Uma luz satélite, um olho
artificial,
uma luz de fruto verde frio por fora
operava esse milagre, essa visão.
Meu pai, que se ausentara,
sabia que seu pai ia ser morto.
Estendia-se a roupa sobre o fogo.
Crescia o pão largo como uma
ampola de penicilina, em tempo de guerra
de guerrilhas.
Luiza Neto Jorge (n. 1939 - m. 1989), in O Seu a Seu Tempo (1966). «Luiza Neto Jorge (...) reduz a uma desolada ou desesperada e, no entanto, fria lapidaridade as pulsões da mais feroz agressividade anti-senso comum, libertada pela aleatória apreensão pós-surrealista, com evidências surpreendentemente certeiras; o seu agudo senso de temporalidade ou transitoriedade assimila cada objecto ou acontecimento ao sítio único, logo depois insensibilizado, daquilo que em geral se concebe como sendo as suas coordenadas espácio-temporais» ( A. J. Saraiva e Óscar Lopes, in História da Literatura Portuguesa). «A sua recusa histórica do modelo do Neo-Realismo — que representa uma ideologia — e a sua deriva do Surrealismo — que representa o inconsciente — prende-se com o querer dar conta do acontecer das coisas, daquilo que se sente, do real, porque a recusa dos códigos de representação indica que entende a representação essencial como não codificável, mas, pelo contrário, como aquilo que altera, descontrola, revela, arruína todos os códigos. (...) A poética de que Luiza Neto Jorge descreve os traços, por exemplo em O Seu a Seu Tempo, é alguma coisa de mais íntimo e íntegro que a generalidade das teorias implicadas (do Simbolismo ao Surrealismo) ou dos textos citados (de Mallarmé a Cesariny) ou das ideias convocadas. É que a sua poesia se organiza por campos de motivos, os da pintura, da memória, do sexo, da morte, mas o seu tema é o da poesia, o dos poderes da palavra» (Fernando Cabral Martins, in prefácio a Poesia 1960-1989). «Na poesia de Luiza Neto Jorge, o olhar e a fala compõem um mesmo e único plano: tanto quanto algo a dizer, o poema é algo a "mostrar"; as mulheres "têm ângulos ausentes no que vêem e no que falam" (itálico meu). Se, neste sentido, falar equivale a olhar, então é porque não há qualquer distância, qualquer diferimento, entre a percepção e a expressão. Ainda de uma outra maneira: o mediato (representação) torna-se imediato (figuração)» (José Ricardo Nunes, in Um Corpo Escrevente - A Poesia de Luiza Neto Jorge).
1 comentário:
A sua poesia é interessante; e a mulher tinha bastas orelhas de poeta.
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