segunda-feira, 18 de maio de 2015

POEMA DO MAR

Recupero a nota biográfica por Cabral do Nascimento na 2.ª série das Líricas Portuguesas (Portugália Editora, 3.ª edição, Setembro de 1967): «António de Albuquerque Labatt de Soutomaior Navarro de Andrade nasceu em 1902, em Vilar Seco, concelho de Nelas. Em Viseu frequentou o curso secundário até ao 5.º ano, terminando-o, porém, em Coimbra. Nesta cidade matriculou-se na Faculdade de Direito, cuja formatura não concluiu por haver ingressado na Escola Superior Colonial, em que se diplomou. Esteve em Lourenço Marques de 1939 a 1940, como funcionário da Junta de Exportação do Algodão Colonial, regressando à metrópole por motivo de doença. Colaborou com assiduidade na Presença e outras revistas e jornais (Ultramar, O Diabo, Variante, Cadernos de Poesia)». Da experiência africana resultou, em grande parte, o livro de estreia: Poemas de África (1941) — na carta prefácio a Poema do Mar (1957), Jorge de Sena refere-se-lhe como um volume de poemas belíssimos. Já da experiência coimbrã, temos a reter a fundação da revista Presença ao lado de José Régio, João Gaspar Simões, Branquinho da Fonseca, Edmundo de Bettencourt e Fausto José.
Por razões sempre difíceis de compreender, o nome de António de Navarro foi praticamente apagado da História da Literatura portuguesa. Devedores dos princípios modernistas lançados pela revista Orpheu, os autores da Presença pagaram caro um esteticismo apolítico que os praticantes do neo-realismo classificavam anódino e os críticos adeptos do surrealismo português consideravam conservador. Correntes e contra-correntes sucedem-se no caudal dos equívocos, cabendo a quem hoje olhe para o passado deslumbrar-se única e exclusivamente com o que de poético sobrevive a uma guerrilha tantas vezes mais política do que estética. Ora, pegando num livro como Poema do Mar não podemos deixar de nos perturbar com a constatação de quão repleto de pérolas está o caixote do lixo da poesia portuguesa. Como podemos dar-nos ao luxo de manter esquecido um livro de tal forma intenso? É, de facto, um mistério acerca do qual não temos a dizer senão o óbvio: sempre atreitos à promoção de porcarias, os portugueses primam pelo dom da negligência. Sendo assim em tudo, não seria de supor que também o fossem com a sua poesia?
Antes de mais, convém referir que se trata de um livro extenso. Cerca de 200 páginas, divididas em três partes, cada qual com um número desigual de poemas: Mar em Carne Viva (76 poemas), O Alar das Redes (58 poemas), Um Barco Demanda o Porto (57 poemas). Ao todo, são 191 poemas de extensão diversa unidos por uma liberdade formal típica do modernismo e uma musicalidade completamente descontraída. Na primeira parte do livro vislumbramos um olhar voltado para fora, enleado e embevecido com a paisagem marítima. Conquanto este olhar se concentre na paisagem, ele desagua num mar de interrogações sobre o ser e as suas fragilidades. O mar é aqui uma força universal de carácter divino, porventura o único Deus que o poeta reconhece nos seus versos, uma força que impele o ser à interrogação, à dúvida, à manifestação de angústias e temores a partir da qual surge um sentimento de pequenez e de vulgaridade definidor da condição humana. A relação da consciência humana com o mundo natural o é o grande tema desta poesia.
Nada disto é novo em termos temáticos, embora a configuração cative o leitor também pela sugestão de um mar onde o sagrado se manifesta física e morfologicamente. Este “mar em carne viva” sofre e sangra, cisma, tem dores violentas, tem uma alma, confessa-se, «Desfaz o que ama, / Às vezes, e destrói» (p. 35). Neste sentido, ele assemelha-se a Deus: o criador que destrói a criatura. Mas é um Deus físico, telúrico, um Deus presente e visível, um Deus ante o qual o homem se interroga:

Que sou eu em frente a este mar,
Cheio de amor e cheio de ódios, cheio
De convulsões e de calma, meio
Homem, meio lenda, a treva, o luar,
E os sexos que se lavam no rolar da onda
Depois de terem dado um filho ao mar?

Esta é a primeira estrofe do poema XXIII, a qual percutirá um eco revelador no poema LXVIII:

Que sou eu em verdade ante mim mesmo,
Que filosofia ou sonho pode eternizar-me?
Tombam as folhas das árvores,
E vejo que elas tombam e murcham e vão no vento…

A dúvida não é, portanto, de natureza identitária (quem sou eu?), mas antes de carácter ontológico (que sou eu?). Este “o que sou” exprime igualmente uma dúvida sobre a condição do poeta, a qual aparecerá contemplada no poema XLV:

Ser é duvidar.
Se se acreditasse na vida, podíamos matá-la.
Assim, vamos esperando que a revelação surja.

Sou poeta porque duvido da poesia
E creio na vida
E no teu sexo, e na garra lasciva que lhe sabes abrir,
Sem querer.

E porque duvido e não quero a poesia,
Ela persegue-me, insinua-me a sua harmonia,
Até nos momentos mais torvos em que a esconjuro.

E vem ter comigo; através do meu destino
Diz-me que abrirá o escuro
Que há nas manhãs da minha alma
E depois foge… E eu lá vou, peregrino,
Estranha ironia,
A ver se a procuro
E encontro a calma
Em tudo isso em que não acredito — a Poesia,
A condenação de tentar o escuro
Com a luz sombria que nos irradia para além.

Poeta dos paradoxos, António de Navarro mergulhou neste livro num mar de dúvidas clássicas e essenciais: «O tempo vai fazendo estátuas invisíveis dentro do homem» (p. 71) Um sentimento de vazio atravessa a obra, deixando à passagem um rastro de perdição que é o do poeta em busca de si próprio: «Ah, mar dum raio, que me roubaste sei lá quê / E cantas com a minha voz perdida!...» (p. 75) No decorrer da busca a gente encontra uma ânsia de grandeza, a tal grandeza perdida no tempo que a poesia moderna expressou com rasgos de desencanto e de desesperança, porque tal como as folhas das árvores que tombam também o homem tomba, e sobre tudo o que tomba fica o mar, encarnação do tempo, encarnação de Deus, o mar poderoso que engole a terra enquanto o homem caminha para a morte: «E como passatempo / Façamos ao menos a poesia do que não fomos / E assim consigamos trazer até ao peito a distância que nos queimou em que não ardemos» (p. 86).
Ora, na segunda parte do livro intensifica-se a ideia do poeta como um «vagabundo perdido» de «destino errante». É também a figura do náufrago, do pescador à deriva, que emerge em versos onde o problema da morte adquire especial relevância. Num tom geralmente elegíaco, António de Navarro evita uma poesia inutilmente melancólica com momentos de introspecção onde cabem mendigos, prostitutas, pedintes, gente em conflito permanente dom a ideia de Deus, devaneio por excelência das mentes atropeladas pela percepção da morte:

O meu enterro
Deveria ser uma cousa fatigante,
Para mim, hoje,
Que creio na minha agonia
Vagamente e como cousa longínqua.

E é nesse momento que a saudade
Minha é não só maior que eu
Mas do que a eternidade.

Por isso o meu enterro me aborrece.
Era bem melhor ter nascido
Uma indefinível harmonia,
Vagueante, vaga, indefinida…

Eu sei, eu sei que a minha alma ficará na vida
Mas eu habituei-me a ter corpo,
A ter ânsias, a cuidar do fim com cuidados infinitos,
A beber e a embriagar-me, copo a copo,
— E a procurar mesmo a embriaguez no sonho dos mitos.

De modo que o meu enterro
Vai maçar-me horrorosamente,
E então se eu chegar a poeta célebre
Vão embalsamar-me com ditirambos
E necrológios catitas e, ao fim,
Morremos ambos
(Eu e eles) — e, se dessem calor, enfim!...

Este poema, evocativo de uma ironia algo negra que o autor parece ter ido colher a Mário de Sá-Carneiro, mostra quão central é o problema da morte nesta poesia. Ele coloca-se a partir de uma reflexão sobre as contradições que opõem a ideia de eternidade à brevidade da vida. O poeta é aquele que olha para a eternidade (o mar) e pressente a sua finitude, sabendo porém que ao mergulhar nessa eternidade emergirá com a experiência de uma aventura meramente ideal. É no conjunto final do livro, dedicado a Edmundo de Bettencourt, Vasco Miranda, José Régio, João Gaspar Simões e Afonso Duarte, que esta aventura se abrirá a imagens por vezes grotescas, voluntariamente patéticas, de timbre decadente, capazes de dramatizar sob aspectos invulgares a relação da poesia com o mundo. No poema Friso dos mendigos:

Pode ser que a tua teta flácida,
Por milagre da natureza,
Dê um homem
E assim estruture em carne uma verdadeira reza,
E alguma cousa se compense…

Ou:

Trazem o longe em farrapos,
E, nas guitarras,
Uma luz feita de trapos,
Que range, se esganiça e geme…

Outros fazem música com o puz
Das feridas
Como se abertas pelas garras
Da noite — e porque não das nossas vidas?...

Já no poema Fala o poeta enfim, este acusa a fraqueza e a ignomínia do homem tecendo uma espécie de programa:

E, depois, o que em mim é pureza
E canto, escarra na tua agonia
E ergue um cântico à vida
Que nasceu da cinza onde o incêndio
Incinerou todo o pobre,
E deixou a alma balouçando-se e criando harmonias
No seu fio de luz.

Parece-me errado supor a ausência de conteúdo político numa poesia assim. Ele está latente na forma mais nobre que a política pode assumir em contexto estético, ou seja, a partir de evocações que sugerem uma ética humanista que canta a vida, o corpo, a carne: «Há que meter o caminho nas veias; / Sigamos pois, cantando, para que ela / Colham da cor da flor das olaias / A cor que embriague as suas falas» (p. 140). E ao cantar a vida, aproxima-se daqueles que, perseguidos pela angústia, mergulham num mar de dúvidas acerca da sua própria condição, colocando-se, desse modo, ao lado de todos quantos mendigam e erram pelo mundo em busca de beleza. Altamente emotiva, esta poesia de um pessimismo renegado reflecte o desespero lírico do solitário assombrado pela Natureza que, a braços com Deus, se volta para dentro e tenta compreender-se porque sabe ser essa a condição essencial sem a qual o mundo não se aceita. Fala-se de psicologismo a respeito de poetas como António de Navarro, como se o psicologismo fosse, por si só, defeito. As “descontinuidades” que pontuam os seus versos desmentem o preconceito, na medida em que nos garantem estarmos mais perante a manifestação sentida de um tormento interior do que perante uma encenação artificiosa, mais ou menos filosófica, dos grandes temas trágicos. A título de exemplo, e para fechar a prosa, o poema XXX da última parte do Poema do Mar:

SOLILÓQUIO

No meu fundo não há a imensidão do nada
Mas o embalo que pede eternidade a uma sombra.
E pois, dou-me inteiro, vida, e, conturbada,
Que tu a dés a todos os clarões donde a madrugada suba…

Mesmo que eu não queira,
Que a minha covardia me negue,
Que a luz do meu íntimo se tolde de cegueira,
Dá-me plenamente ao caminho que segue
Direito ao coração do futuro.

Dá-la-ás aos vadios, aos mendigos,
À prostituta, ao criminoso,
Ao plutocrata, aos meus inimigos,
Para que eles sintam o amor e o gozo
Duma confidência humana, dum beijo,
Dum cicio, do perfume duma ideia,
Duma folha no vento, dum cântico d’água,
E até do travo doce que há na dor
Quando a vida vence o amargor da mágoa,
E se pode olhar o horizonte como a um Deus.

Esse horizonte que se firma dentro de nós
E, assim, é caminho correndo nas veias,
É, de certo modo, sol, e o sortilégio da nossa voz
Não a perder-se, mas a erguer as ideias
Até à sua essência, que é a dádiva de luz
Aos corações e às almas que a precisam,
Que precisam pão, que precisam caminho,
Que desejam trilhar os passos de Jesus,
Mas cantando, cantando a humanização do etéreo,
Cantando a sua própria alma como um ermo
Onde cada qual pôs a sua cruz
Em que o espírito veio revelar-se em tudo quanto, então,
Serviria a amplidão da consciência humana.



António de Navarro, Poema do Mar, com retrato do pintor João Hogan e carta prefácio de Jorge de Sena, Portugália Editora, Novembro de 1957.

1 comentário:

Anónimo disse...

Felicito-o por não deixar esquecer o poeta António de Navarro.