quinta-feira, 11 de junho de 2015

PERSIANAS

A estreia de Miguel-Manso (n. 1979) com os livros Contra a Manhã Burra (Edição do autor, Maio de 2008) e Quando Escreve Descalça-se (Trama Livraria, Novembro de 2008), trouxe à poesia portuguesa contemporânea uma frescura lexical e um desembaraço formal que andavam arredados pela prática quase invariável de uma discursividade submergida em apontamentos quotidianos, elucubrações avulsas sobre a passagem do tempo, narrativas nocturnas e uma retórica elegíaca inconsequente. Notou-se nesses livros uma nostalgia do belo, uma focalização no pormenor, uma arqueologia da palavra que volumes tais como Santo Súbito (Edição do autor, Março de 2010), Ensinar o Caminho ao Diabo (Edição do autor, Março de 2012) e Um Lugar a Menos (Edição do autor, Março de 2012) continuaram sob a sigla genérica de “Os carimbos de Gent”. A história dos carimbos é conhecida e não vale a pena reproduzi-la, mas talvez não seja inoportuno relembrar alguns dos textos que dediquei a esses livros aqui, aqui e aqui.
O peso que hoje recai sobre Persianas (Edições Tinta-da-China, Abril de 2015) é o peso da expectativa. Embora tenha publicado, em 2013, uma antologia pela Relógio D’Água, este é o primeiro original de Miguel-Manso a merecer uma distribuição conforme a mediatização de que os seus versos foram alvo desde a primeira hora. Trata-se de um livro extenso, composto por três conjuntos onde se nota a preocupação de organizar os poemas por núcleos temáticos distintos (ainda que interligados). O primeiro intitula-se Campéstico, Paisagens e Interiores, o segundo ofereceu o título ao livro, o terceiro chama-se Da Cegueira dos Pintores. Sublinhe-se, desde já, que os nomes do primeiro e do terceiro conjuntos foram surripiados a artistas visuais que uma nota final aponta: Campéstico, Paisagens e Interiores é o título de uma série de pinturas de Álvaro Lapa, Da Cegueira dos Pintores é um texto de Júlio Pomar.
A relação estabelecida entre os poemas de Miguel-Manso e o universo das artes visuais foi sempre de proximidade declarada, podendo mesmo afirmar-se a existência de uma imagética particularmente visual nos seus versos. São imagens que decorrem de um ver, mas não apenas de uma postura determinística do sujeito face ao objecto. No último conjunto deste livro, repleto de referências provenientes das artes plásticas, essa relação é problematizada nos três versos finais do poema Folha de Sala para Sargy Mann (pintor britânico, quis o acaso, falecido à data da publicação deste livro): «quem vir por fora estas pinturas é cego de as não / ver onde perduram: // diante do que em si é através» (p. 161). O remate, que aparenta uma blague, deixa-nos, na realidade, perplexos, pois alude a uma espécie de elo cabalístico entre aquele que contempla e o que é contemplado.
Evito a palavra fusão por nela pressentir há muito uma grande confusão, sendo talvez mais correcto falar-se de um circuito mediado pelos sentidos que faz a imagem perdurar na emoção gerada pelo instante. «O enigma consiste em que o meu corpo é ao mesmo tempo vidente e visível», dizia Merleau-Ponty, acrescentando que «o espelho aparece porque eu sou vidente-visível, porque há uma reflexividade do sensível, que ele traduz e redobra. Através dele, o meu exterior completa-se…» De algum modo este diálogo reproduz os efeitos do poema face ao leitor, ou seja, o que o leitor recolhe no instante da leitura é uma visão que coloca o pensamento numa encruzilhada de sensações e de emoções. Daí que, e ainda com Merleau-Ponty, devamos dizer que «A arte não é construção, artifício, relação industriosa com um espaço e um mundo exteriores. É verdadeiramente o «grito inarticulado», de que fala Hermes Trimegisto, «que parecia a voz da luz»».
Ora, alguns poemas de Miguel-Manso, mais os do terceiro conjunto, são como que esse «grito inarticulado que parecia a voz da luz». Na sua aproximação às obras de arte convocadas, eles estoiram para lá das molduras em dedicatórias a amigos, inúmeras reflexões sobre a escrita — por vezes, em estreita comparação com a pintura: «a escrita — a pintura — é como apertar uma vagem / de baunilha // custa e gasta-se» (p. 111) —, apologias do desprendimento em invocações onde a atitude dos artistas é mais motivo do que as suas obras (Gauguin sem calças a tocar harmónio, O pijama de Matisse, O tronco nu de Picasso, A camisola do Miró, Cesariny de roupão ao piano), anotações biográficas, diversões gráficas, reflexões intimistas, justaposições identitárias inesperadas (Paris, hôtel de Nice, Turim, Hotel Roma, Paris, hôtel La Louisiane, Porto Alegre, Hotel Majestic), raras mas contundentes farpas à actualidade:

PLÂNCTON
para o Luís Pedroso

a moedagem por que tudo se rege
desde o início até ao cabo dos prazos
onde a coruja económica plana sobre
a cegueira do aperto ecuménico

e nos diz que seremos felizes já no terceiro
semestre do corrente

se são anos complicados
até para o gozo dos banqueiros o que será daqueles
que se abancam dia e noite
na desgraça

a salvo disto estão felizmente os poetas
alimentados do éter

e do plâncton

Irónica quanto baste, por vezes inflectindo na direcção de um humor escarninho, esta poesia não se restringe, porém, a tais efeitos. Num certo sentido podemos até julgar que os evita, depois de os ter explorado ao limite suportável em livros anteriores. Noutro sentido, há um elemento biográfico revelado na nota de badana que marca fortemente os dois primeiros conjuntos da colectânea: «Viveu em Almeirim e em Lisboa. Hoje mora numa aldeia do concelho da Sertã». O regresso às origens rurais é uma marca fortíssima tanto em Campéstico, Paisagens e Interiores como em Persianas, a qual se manifesta em elementos que podemos resumir a partir da leitura do poema 27, que me parece central, do primeiro conjunto:

Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.
CESÁRIO VERDE

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,

cercado de hábitos
e de conteúdos que nada e que tanto
predizem

cascalho que o íntimo da casa
importa para o malquerido usufruto
porcelanas que reluzem a cada almoço
aquém e além persianas

coisas
que multiplicam até ao sufoco
e pior que coisas a qualidade que têm
que lhes pomos

escrevo nomeando tudo
e tudo transcende o nome que tem
tudo alarga de inominável
brilho

E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua alcatroada

o mesmo alvor mas filtrado têm
os matizes domiciliados as translucidezes
de que me sirvo para inteirar
o esqueleto confuso destes versos

triste — e clemente — quem neles pousa
agora o olhar

Num livro repleto de epígrafes (Álvaro Lapa, Bíblia, Catarina Barros, Daniel Faria, Herberto Helder, João Barrento, João Vário, José Tolentino Mendonça, Leonard Cohen, Omar Khayyām, Rumi…), esta de Cesário Verde é sintomática de uma relação aberta com a tradição. Provenientes do poema Num Bairro Moderno, estes versos de «Cesário, o poeta-pintor («pinto quadros por letras, por sinais»)», segundo Maria Ema Tarracha Ferreira, são exemplificativos de um modo de cantar as rotinas citadinas ao qual Miguel-Manso irá contrapor a luz do campo, não sem ironia ter sabotado Cesário cá mais para o fim. No original, lemos «A larga rua macadamizada» onde agora está «A larga rua alcatroada». Esta transformação da paisagem não denuncia apenas o efeito do tempo sobre as coisas, pelo menos não tanto quanto a actualiza. As ruas macadamizadas de agora são outras, perduram enquanto tradição onde a contemporaneidade opera transfigurações mais ou menos radicais.
Logo nos primeiros versos deste poema encontramos, de igual modo, uma alusão a Fernando Pessoa e ao conhecidíssimo poema O Quinto Império. São também inúmeras as alusões que atravessam Persianas: Flannery O’Connor, Zbigniew Herbert, Annemarie Schwarzenbach, Pedro Homem de Melo, Manuel Bandeira, Mário de Sá-Carneiro, Arvo Pärt, Rosa Ramalho, Morandi, Seurat, Van Gogh, só para dar uma ideia da manta de retalhos… Mas o Quinto Império de Miguel-Manso é de índole doméstica, não acusa ambições messiânicas, concentra-se nas ruas da aldeia do concelho da Sertã para onde o poeta se mudou e nas outras, as da infância, que vêm de quando em vez à memória e transcendem a aleatoriedade caótica das lembranças para se inscreverem no texto já com flutuações que não apenas as das reminiscências acidentais. É o império dos campos, do céu aberto, do sossego, da paz, do silêncio, da luz que atravessa os dias e da noite que cai sobre as horas, é o Império daquele que sente e pensa e escreve e retrata os dias, é o Império das palavras, que o poeta resgata obsessivamente e faz reviver em renovados contextos de sentido e de significado.
Há porém uma dimensão saturante nestes textos que importa apontar. Refiro-me a um recorrente, insistente, permanente questionamento sobre a escrita, a natureza da poesia, as capacidades do poema, uma insistência que de algum modo defrauda e contradiz a desimportância da poesia que Miguel-Manso sublinha a páginas 103. Mais irritante ainda quando estes tormentos são reforçados pela pose do poeta que se dirige ao leitor: «perdoe o sensato leitor eu insistir / ali e aqui no gracejo fácil» (p. 44), «uma pausa ó único leitor // que na desordem em que está / a tua vida e a minha veio meter-se de novo / este livro antigo» (p. 60), «(o leitor não precisará de encher um edredão?)» (p. 84), «leitor pondo / à laia de São Tomé o dedo nesta ferida» (p. 93), ou, na sua versão derradeira, o último poema do livro:

O GORILA INVISÍVEL

leitor — lépido multiplicador
de esquecimentos — que porventura examinaste
o dom e a mácula destes versos
brancos

terás visto o gorila?


Trata-se de um impulso que talvez pudesse ser refreado, senão mesmo evitado, sob pena de afectar desnecessariamente a tal relação estabelecida entre o sujeito e a obra que no início referíamos. As figuras, isto é, os poemas, que o leitor observa/contempla não são meios de comunicação onde o objecto possa impor-se ao sujeito, pelo menos segundo os pressupostos que as persianas permitem antever quando abertas pela leitura. Forçar esta relação significa adulterá-la. Que o poeta não pense e não se preocupe com o leitor é tudo quanto dele esperamos.

6 comentários:

Jorge Melícias disse...

Gostos e opiniões todos temos, e esta é uma opinião motivada pelo gosto. Partindo desse pressuposto procuro-a o mais fundamentada e justa possível.
Considero o Miguel Manso poeta (e não, não há aqui qualquer endeusamento do termo porque, para começo de conversa, não há mesmo nada para endeusar nesse vocábulo, considero-o poeta porque escreve algo que identifico como poesia, "tout court", goste eu mais ou menos da sua proposta), mas não estou plenamente seguro que eu e ele partilhemos a mesma noção do que é ser "poeta". Essa é, aliás, uma das maiores críticas que lanço à sua poesia e, pelos vistos, nisso coincidimos, Henrique.

Haverá outras críticas mas vou apenas ater-me a esse aspecto e tentar elaborar um pouco mais:
onde para mim "poeta" é apenas alguém que escreve algo que eu identifico como poesia (e aqui está implícito, obviamente, a subjectividade do meu próprio gosto, que, ainda assim, procuro educado e minimamente conhecedor) o Miguel Manso deve ver outra coisa qualquer. O quê, não sei bem, mas a "pose" não andará muito longe dessa concepção. E já nos basta o outro que se dirige aos humanos.
Porque só assim se explicam os sempre eternos e manhosos piscar de olhos ao leitor, numa reiterada e complacente (reservo para estes comentários a carga adjectival que poupo à minha poesia :) tentativa de passagem de um atestado de menoridade a quem lê. Imagino (ou tento imaginar) que seja uma tentação muito grande, por parte de quem escreve, dar uma mãozinha ao leitor, pensa ele, levando-o pela baixa-mar até um banco de areia ainda mais seguro. Mas enquanto leitor vejo isso apenas como um joguinho de sedução tão anódino como irritante, venha ele com mais uma ou menos uma graçola fácil à mistura. E essa atitude, de tão entranhada, suscita, no final, uma outra questão: quem é que é afinal órfão de quem nisto tudo, o leitor ou o poeta? Quem é que procura, desesperadamente, esse banco de areia, esse ter-se em pé sobre chão firme e familiar? Esse aval de segurança e reconhecimento?
Não sei, pela parte que me cabe, e enquanto leitor, só posso atestar que não sou eu.

hmbf disse...

"enquanto leitor vejo isso apenas como um joguinho de sedução tão anódino como irritante"

De acordo, por isso refiro que seria a evitar. Mas já não me parece que se trata de uma "tentativa de passagem de um atestado de menoridade a quem lê", na medida em que apenas fere o que é lido.

É pura retórica. E, como dizia o Leminski a propósito de Cruz e Sousa:

«Há profunda contradição entre poesia e retórica. Contradição expressa, concretamente, na Antiguidade greco-latina, pela condição mendiga e esfarrapada dos poetas contra a prosperidade dos "retores", mestres dos juristas, políticos e homens públicos da Grécia e de Roma. / Poesia não é literatura. É outra coisa: é arte, mais para o lado da música e das artes plásticas, como Pound viu (ou ouviu) muito bem».

Jorge Melícias disse...

Sim, terás razão. Aliás, a ideia de que na condição de leitor não me sinto emasculado por qualquer bisturi de fancaria (e acredito que, grosso modo, ocorra isso com todo o leitor), perpassa ao longo do comentário anterior. Por isso, e uma vez mais enquanto leitor, adiantei a possibilidade de afinal ser o poeta que é órfão do leitor, e não o contrário. E isso parece-me uma constatação la palassiana no que à poesia do Miguel Manso diz respeito.

Jorge Melícias disse...

Porque citaste o Leminski a propósito do Cruz e Sousa e da retórica (e o que é a retórica em poesia senão uma tentativa, por parte de quem escreve, de encontrar uma nesga de terreno comum, que não seja o assombro, com quem lê?) deixa-me colocar aqui um soneto genial de um outro poeta, seu - do Cruz e Sousa - contemporâneo, Augusto dos Anjos. Já o conhecerás, por certo, mas aí fica:

Versos Íntimos


Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!



hmbf disse...

Augusto dos Anjos é muito cá de casa. E esse soneto ficou todo sublinhado na edição que tenho da sua obra. Ainda lhe acrescentei, no final, uma sentença óbvia: "Muito bom!" Escrevi sobre ele aqui (http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.pt/2012/04/doutor-tristeza.html) e sobre a obra acolá (http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.pt/2012/04/eu-e-outras-poesias.html), tendo também evocado os seus versos ali (http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.pt/2012/04/feto-malsao.html).

Jorge Melícias disse...

Bem vejo que já te referiste ao Augusto dos Anjos em várias ocasiões. É um poeta, como sabes, que vale bem a pena.