Chegámos àquele ponto em que não precisam de nos dizer
como devemos viver para conseguirem obrigar-nos a viver de determinada maneira.
Condicionados, coagidos, fazemos como diz o povo: metemos o rabinho entre as
pernas, engolimos sapos, comemos e calamos. Se não calarmos, sofremos por
antecipação o que nos espera. Mais uma vez, como diz o povo, ficamos marcados,
com a corda ao pescoço e a cabeça a prémio. Seria uma situação como outra
qualquer, não fosse aquela em que a cabeça, de tão cheia, não consegue
libertar-se do que a agride e carrega dentro de si, para todo o lado, tudo o
que facilmente largaria no lixo das piores memórias. Caminhar gera, pelo menos,
a ilusão de um esvaziamento, suspende as ligações e coloca o interruptor numa
momentânea intermitência que pode livrar-nos da loucura total. Mas é tudo uma
ilusão, e o pior desta ilusão é ela estar consciente de si própria. A primeira
evidência é o cansaço, uma saturação que começa por ser mental e se reflecte na
escassez de palavras, nas frases cortadas, numa incapacidade para a comunicação
e, pior, para o raciocínio, o qual surge truncado e inútil nas acções constrangidas
a que a opressão obriga. Depois chega ao corpo, instala-se nos nervos, no
sangue, nos músculos, nos ossos como um cancro intratável. São sintomas a
letargia, tédio absoluto, uma inércia insuperável que as drogas disfarçam com
sorrisos ocasionais e gargalhadas estridentes, doentias, as gargalhadas de quem
por dentro já só guarda nojo e raiva. O diagnóstico foi feito, busca-se
tratamento. As drogas adiam o problema, arrastam-no por labirintos que a
ressaca deslinda, deus é o mais precário dos tratamentos, leva-nos sempre à
morte, a natureza tem as suas vantagens, embora possua igualmente efeitos
secundários imprevisíveis. Encalhado num torpor maligno, resta ao doente ser
paciente. Não por acaso se estabelece entre as duas palavras uma relação sinonímica,
a paciência, a ciência da espera, de uma certa forma de esperança, é o único
tratamento ao alcance do doente. Então ele faz como o cão mais fiel e senta-se
na pedra, a olhar para a queda de água, e pensa com as palavras disponíveis. São poucas, porventura insuficientes, o dicionário cada vez mais
limitado é uma ferramenta envelhecida, mas Bashō não precisou de muitas
palavras para dizer o que via. Precisou apenas das certas, as palavras certas.
Em que fundo bateu a pedra atirada do alto da tua infância? Quanto tempo
demorou a atravessar cada uma das camadas que compõem a idade? Chegaste onde te
encontras sem teres dado por isso e agora aqui chegado questionas-te e
questionas tudo quanto à tua volta ainda se desloca para lugares incertos,
lugares definidos pela ausência, pelo esquecimento, pela distância. Tu sabes
quanto pesa a pedra, embora desconheças o fundo onde por certo há-de vir a
repousar. Que esse desconhecimento não te impeça de continuar a cair. A hora do
embate chegará quando menos esperares, súbita e inesperadamente chegará a hora
do embate. Daí que todos os tormentos sejam escusados. Se te apoquenta o futuro
dos outros, por exemplo, dos filhos, mete no que pensas acerca desse futuro um
pouco das lições ditadas pela História. Tudo se constrói do nada. E entre o
nada e qualquer coisa muitas vidas desvanecem, muita existência se perde para
sempre no silêncio, no esquecimento, no vazio, gente a quem nem um epitáfio
valerá. Mas que viveu, mas que existiu, tal como tu agora vives e existes
numa vida que não é somente tua, porque chegámos àquele ponto em que não
precisam de nos dizer como devemos viver para conseguirem obrigar-nos a viver
de determinada maneira. O resto já sabes: «O teu corpo composto — três quartos
de água, mais um punhado de minerais terrestres. E essa grande chama em ti de
que desconheces a natureza. E nos teus pulmões, sorvido e libertado sem cessar
no teu tórax, o ar, esse belo estrangeiro, sem quem não podes viver» (M. Y.).
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