quarta-feira, 15 de julho de 2015

CASCATA DE CELA CAVALOS

Chegámos àquele ponto em que não precisam de nos dizer como devemos viver para conseguirem obrigar-nos a viver de determinada maneira. Condicionados, coagidos, fazemos como diz o povo: metemos o rabinho entre as pernas, engolimos sapos, comemos e calamos. Se não calarmos, sofremos por antecipação o que nos espera. Mais uma vez, como diz o povo, ficamos marcados, com a corda ao pescoço e a cabeça a prémio. Seria uma situação como outra qualquer, não fosse aquela em que a cabeça, de tão cheia, não consegue libertar-se do que a agride e carrega dentro de si, para todo o lado, tudo o que facilmente largaria no lixo das piores memórias. Caminhar gera, pelo menos, a ilusão de um esvaziamento, suspende as ligações e coloca o interruptor numa momentânea intermitência que pode livrar-nos da loucura total. Mas é tudo uma ilusão, e o pior desta ilusão é ela estar consciente de si própria. A primeira evidência é o cansaço, uma saturação que começa por ser mental e se reflecte na escassez de palavras, nas frases cortadas, numa incapacidade para a comunicação e, pior, para o raciocínio, o qual surge truncado e inútil nas acções constrangidas a que a opressão obriga. Depois chega ao corpo, instala-se nos nervos, no sangue, nos músculos, nos ossos como um cancro intratável. São sintomas a letargia, tédio absoluto, uma inércia insuperável que as drogas disfarçam com sorrisos ocasionais e gargalhadas estridentes, doentias, as gargalhadas de quem por dentro já só guarda nojo e raiva. O diagnóstico foi feito, busca-se tratamento. As drogas adiam o problema, arrastam-no por labirintos que a ressaca deslinda, deus é o mais precário dos tratamentos, leva-nos sempre à morte, a natureza tem as suas vantagens, embora possua igualmente efeitos secundários imprevisíveis. Encalhado num torpor maligno, resta ao doente ser paciente. Não por acaso se estabelece entre as duas palavras uma relação sinonímica, a paciência, a ciência da espera, de uma certa forma de esperança, é o único tratamento ao alcance do doente. Então ele faz como o cão mais fiel e senta-se na pedra, a olhar para a queda de água, e pensa com as palavras disponíveis. São poucas, porventura insuficientes, o dicionário cada vez mais limitado é uma ferramenta envelhecida, mas Bashō não precisou de muitas palavras para dizer o que via. Precisou apenas das certas, as palavras certas. Em que fundo bateu a pedra atirada do alto da tua infância? Quanto tempo demorou a atravessar cada uma das camadas que compõem a idade? Chegaste onde te encontras sem teres dado por isso e agora aqui chegado questionas-te e questionas tudo quanto à tua volta ainda se desloca para lugares incertos, lugares definidos pela ausência, pelo esquecimento, pela distância. Tu sabes quanto pesa a pedra, embora desconheças o fundo onde por certo há-de vir a repousar. Que esse desconhecimento não te impeça de continuar a cair. A hora do embate chegará quando menos esperares, súbita e inesperadamente chegará a hora do embate. Daí que todos os tormentos sejam escusados. Se te apoquenta o futuro dos outros, por exemplo, dos filhos, mete no que pensas acerca desse futuro um pouco das lições ditadas pela História. Tudo se constrói do nada. E entre o nada e qualquer coisa muitas vidas desvanecem, muita existência se perde para sempre no silêncio, no esquecimento, no vazio, gente a quem nem um epitáfio valerá. Mas que viveu, mas que existiu, tal como tu agora vives e existes numa vida que não é somente tua, porque chegámos àquele ponto em que não precisam de nos dizer como devemos viver para conseguirem obrigar-nos a viver de determinada maneira. O resto já sabes: «O teu corpo composto — três quartos de água, mais um punhado de minerais terrestres. E essa grande chama em ti de que desconheces a natureza. E nos teus pulmões, sorvido e libertado sem cessar no teu tórax, o ar, esse belo estrangeiro, sem quem não podes viver» (M. Y.).

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