sábado, 18 de julho de 2015

MORTE DE UM DJ



Numa entrevista cedida ao Público em Novembro de 2014, o dramaturgo francês Jean-Pierre Sarrazac afirmava: “Não escrevo peças de teses, não escrevo peças sociais… Escrevo peças onde tento falar do tempo que vivemos”. O tempo das personagens recentemente encenadas por Fernando Mora Ramos em Morte de um DJ não nos é estranho, embora haja nele uma dimensão que transcende os limites da história. A acção ocorre na noite em que o Muro de Berlim caiu, mas o facto histórico não encerra em si um tempo definido. Quero dizer que a acção ocorre também hoje, pois o muro que dividia a Alemanha caiu erguendo outros muros, físicos, vergonhosos, psicológicos, políticos, preconceituosos, culturais, que se mantêm erguidos a pedir umas valentes marteladas. É o muro que divide o Norte e o Sul da Europa, é um muro chamado Mediterrâneo, é o muro que separa a ostentação da miséria absolutas. O teatro de Sarrazac tem essa capacidade de repisar muros, tem até talvez a intenção de abanar alicerces que tendemos a julgar impenetráveis — por nos condicionarem os movimentos num dia a dia subserviente às necessidades que o lugar-comum e a ideia feita vão satisfazendo. No entanto, para decalcar Stig Dagerman, satisfazem deixando um enorme desconsolo. Porque a realidade não é bem aquilo que os nossos olhos vêem, ou não o é apenas, ou não o é necessariamente, o texto aceita a dimensão da parábola, as palavras estendem-se no significado, aludem a sentidos e relações que não importa aqui decifrar. Importa olhar para as três personagens em palco e pensá-las, na medida em que são, cada uma delas, com os seus graus de relevância bem distribuídos, terreno fértil para reflectirmos o nosso lugar numa história sem fim.
A jovem actriz que acorda sozinha no quarto de Hotel tacteia o espaço à sua volta, ainda tem dentro de si sonhos que em breve saltarão pela janela. O seu monólogo inicial é o de uma utopia que está de um dos lados do muro, sonha ser actriz, sonha encarnar realidades profundas, acorda de um ménage à trois com o desconhecido e com a fama incomensurável de um DJ alienado. As luzes jogam com os seus movimentos uma espécie de quarto escuro, jogam às escondidas com a ausência. Ela diz: “quero o meu nome inscrito no calendário”. Mas será este querer, será esta vontade, será este desejo conciliável com a realidade? Algures perdida num labirinto de paredes dúbias, ela sonha, ela deseja, ela ambiciona, transmite-nos e oferece-nos o romantismo dos seus quereres, mas caminha sobre uma corda bamba onde facilmente perderá o equilíbrio. A entrada em cena do DJ será o sopro que faltava para a sua queda no abismo.
Figura grotesca, fantasmagórica, encarnação da alienação que o sucesso e a fama desmesurados inflamam, este DJ aparentemente anémico de sentimentos irá revelar-se mais frágil do que julgaríamos à partida. A sua maior fraqueza é uma réstia de consciência de si próprio que transporta no imo obscuro da despersonalização. Não podemos deixar de nos perturbar quando o ouvimos dizer: “aquele que nunca amou ninguém é forçosamente um assassino”.
Curiosa a ligação que podemos estabelecer entre as três figuras. Todas elas nos parecem perdidas dentro de si próprias, perdidas ora no sonho, ora na loucura, ora num pragmatismo mercantilista, mas ligadas por uma ténue flama de humanidade. Existem, digamos, na sombra do que são. E isto é actualíssimo, impõe-se de 1989 para hoje com o brilho estonteante da espectacularidade, num Ocidente a transformar-se debaixo de fogo-de-artifício onde o verdadeiro, o genuíno, o autêntico são cada vez mais difíceis de destrinçar. É o Ocidente dos inimigos invisíveis, de um reinado onde a fantasia e a mentira ocupam o mesmo trono.
Faz sentido que o único sobrevivente em palco seja a figura que parecia mais secundária. Não o é. O agente do DJ, com o seu pragmatismo ignóbil, atrai à realidade o alienado (DJ) e a utopia (actriz). Ou tenta. Na realidade, passe a redundância, a realidade é a estátua de Lenine a ser derrubada, metáfora de um mundo supostamente desfeito, tantas vezes utilizada abusivamente, que neste contexto adquire um significado especial, pois o mundo que acabou não arrasta um suposto "fim da história", não é senão o começo de um outro mundo, o nosso, o de hoje, o mesmo de sempre, infinitamente recomeçado, que a todo o momento nos questiona sobre as virtudes da linha com que lhe cozeram as bainhas. Talvez exista em Lepo, como refere Fernando Mora Ramos, um sentido do real capaz de afectos, um sentido do real que parece ausente tanto em Carlota como no DJ. Lepo, o empresário ou agente, acaba com o seu produto nos braços, sobre ele cai o pano com estrondo inesperado. Víamos nele o acessório que, feitas as contas, define o cenário. É o que nos resta, cenários dominados pelo acessório. E ainda agora a queda começou.
 
 
P.S.: se isto fosse um texto crítico, teria de referir o trabalho do encenador, dos actores, entre outros implicados na construção da peça. Não é um texto crítico, é uma espécie de agradecimento. Em palco estão Alexandre Calçada, Fábio Costa e Maria Quintelas. Se não estivessem bem, suponho que não me teriam martelado os muros da consciência. Grato.

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