Um amigo fez-me chegar a notícia de um consultório de
poesia nas praias de Armação de Pêra e Praia Grande. «A iniciativa da
biblioteca de Silves, realizada em parceria com o Sector de Educação da Câmara
de Silves e no âmbito do Programa Bandeira Azul, é inspirada na ideia de que «a
poesia nos ajuda a conhecermo-nos melhor, a interpretar melhor pessoas e
situações, ajudando-nos a ultrapassar medos e a vencer obstáculos/bloqueios
emocionais e/ou psicológicos e a orientar-nos na construção de um futuro
pessoal mais claro, solidamente construído e feliz» (...). «O desafio consiste em partilhar poesia na praia, contribuindo para melhorar
a saúde emocional e psicológica dos veraneantes que necessitem de ajuda na sua
vida afetiva, profissional, financeira, na sua relação com o tempo (gestão de
tempo ou dificuldade em fazer o luto de um ente querido), etc», acrescenta a
autarquia (...). A Câmara de Silves fala mesmo em
«Biblioterapia, ou a terapia através da leitura» (...). A leitura de poesia é,
de resto, uma terapia recomendada por alguns psiquiatras, nomeadamente ingleses».
A minha primeira reacção foi de desdém, não por desconsiderar as funções
terapêuticas de um António Nobre — cuja poesia emana todo um vigor ideal para a
saúde emocional e psicológica de um veraneante —, mas por me chatear esta mania
de transformarem as praias no que não são. Não basta as barraquinhas com
massagens? Os bares? As gaivotas? As aulas de aeróbica? Foda-se, deixem as
praias em paz e deixem-me em paz nas praias. Praia é praia, não é SPA nem ginásio
nem biblioteca nem clínica psiquiátrica. Praia é mar, rochas, areia, dunas,
peixinhos. Vá lá, praia é também um tipo a apregoar a bela bola de Berlim.
Agora clínica de bilbioterapia?! A bem das praias, deixem a poesia em paz. Por
outro lado, julgo ser uma ideia descabelada esta de a poesia nos
ajudar a “interpretar melhor pessoas e situações”. Deve ser por terem sido
grandes intérpretes que os poetas, os maiores, os grandes, todos eles, foram
sempre tão incompreendidos. Talvez a miséria em que sobreviveram nos ajude, de
facto, a interpretar a bosta de mundo em que vivemos. Mas quando um gajo vai
para a praia não é para ser recordado de que a Florbela Espanca se matou, o
Fernando Pessoa nunca saiu de dentro de si próprio e o desgraçado do Camões passou a
vida a lamentar-se das circunstâncias que o traziam pelas ruas da amargura. Um
tipo vai à praia é para se esquecer disto tudo. E quem é que me pode explicar como a poesia pode contribuir para melhorar a situação financeira de alguém? O poeta mais rico de Portugal? Talvez o Manuel Alegre. Ou o José Jorge Letria. Mas estão a gozar comigo? Partilhar poesia na praia contribui para melhorar a saúde emocional e psicológica dos veraneantes que necessitem de ajuda na sua vida afetiva, profissional, financeira? Quem foi a poetisa que concebeu uma coisa destas? A Maria Helena?
Até acredito que Camilo
Pessanha seja terapêutico (o que ele fumava por certo que era/é), mas parece-me abusado, só um pouco, esperar que a leitura de Clepsidra possa contribuir para alguém
ultrapassar medos e vencer bloqueios emocionais. Pessoalmente, confesso que a
poesia jamais me ajudou a construir um futuro pessoal mais claro. Nem futuro,
muito menos claro. Só me tem dado cabo da cachimónia, por isso vou para a praia
apanhar banhos de sol e brincar com as ondas do mar. É para me esquecer de que os
poetas existem, e que existem quase invariavelmente à altura, enfim, de uma
ignorância de si próprios muito pouco recomendável, solitários,
esquizofrénicos, emocionalmente bloqueados por frustrações várias e fobias
diversas. Que tais exemplos possam ajudar alguém a ser feliz, não vejo como.
Mesmo quando lá do fundo mais fundo dos recalcamentos saem versos limpinhos
como a água das fontes, livres como passarinhos, fragrantes como o ar da
Primavera. Mesmo quando assim é, porra, mesmo quando assim é a gente sabe que
poesia, poesia, verdadeira poesia, é andar numa praia deserta sem vivalma que nos
chateie... com a poesia.
7 comentários:
"Que tais exemplos possam ajudar alguém a ser feliz, não vejo como."
É um paradoxo. A vida deles foi miserável mas os versos foram felizes ou talvez tenham pimenta em excesso.
Se olharmos para a vida deles e conseguirmos lutar contra todas as circunstâncias e tentarmos fazer melhor ou diferente, seremos menos miseráveis e talvez mais felizes mas os versos serão banais, ou talvez não tenham sal.
A felicidade não será a quimera da banalidade, o diluir-se no ambiente sem ninguém reparar?
Ou será que a felicidade é postuma?
Não hão de largar o osso enquanto sobrar alguma coisa intacta ou mais ou menos intacta. Até lá é um ver se te avias. São piores que vírus. Acho que nisso a poesia é como o outro, explorá-la e sem pudor - como tudo o que existe na Terra, aliás - ia ser apenas uma questão de tempo. Já encontraram, está feito, agora é só piorar. E vai continuar. Enquanto não apanharem tudo... Caía-lhes bem aquilo que Romário disse de Pelé: "calado é um poeta". Pior é que são como uma praga.
E são mesmo, Pedro.
confundir livros de poesia com livros de auto-ajuda? xi pá,não se pode ir à praia descansado!
só frequente praias inacessíveis, onde praticamente ninguém ponha os pés. sobretudo patetas.
também não gosto de praias cheias de gente
uma mistura de racismo social neo-salazarista ( o quê? poesia para os pobres?) e de arrogância de menimo burgûes mimado
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