terça-feira, 18 de agosto de 2015

BUKOWSKI, O CRÍTICO

Entre os variadíssimos temas que pulverizam a obra bukowskiana, estão inúmeras referências aos ódios e às paixões literárias de estimação. Charles Bukowski daria um excelente “microcrítico literário”, de garras afiadas e com sarro suficiente para que não lhe descortinemos qualquer compromisso. Não obstante, por vezes aproveita-se de elementos ficcionais para lançar farpas sub-reptícias. No romance Mulheres, a crítica exerce-se de um modo enviesado mas ao mesmo tempo sugestivo:

Chamava-se Randy Evans, e estava demasiado ligado a Kafka para conseguir escrever algo de interessante.

Ou:

A culta viajante do mundo tinha as Irmãs Brönte sobre a mesa de cabeceira. Ambos gostávamos de Carson McCullers, The Heart is a Lonely Hunter. Dei-lhe três ou quarto de seguida e ela gemeu.

Numa outra passagem, ficam claras as preferências do autor:

Encontrei uma pedra grande e comecei a bater contra o cadeado. Ele não cedeu. Meu Deus, o que teria feito Jack London? O que teria feito Hemingway? E Jean Genet?

As três referências surgem como uma espécie de trindade no meio de uma situação caricata. São referências para e na vida da personagem central, o alter-ego Henry Chinaski. Algo semelhante sucede num conto de Histórias de loucura normal:

o que esperaria agora de mim o grande editor? o que é que o Hem teria feito? o Dos Passos? o Tom Wolfe? o Creeley? o Ezra?

A este tipo de alusões deveríamos juntar as considerações sobre a entidade do escritor, quase sempre depreciativas ou, pelo menos, nada glorificantes. Interessam-me mais as referências directas, as declarações de amor ou de ódio. Nelas o desprezo latente à actividade literária como que trai a postura distante do marginal. Como interpretar o capítulo 83 de Mulheres, quando Chinaski está num quarto ao lado de Burroughs e evita o encontro alegando interesses mais prementes tais como a ausência de frigoríficos nos quartos ou a ansiedade pelas corridas de cavalos? Desinteresse ou orgulho? Algumas páginas depois, abordado por uma professora de literatura e pela sua aluna bucha, lá vai respondendo:

«Qual é o seu autor preferido?»
«Fante».
«John F-a-n-t-e. Ask the Dust, Wait Until Spring, Bandini».
(…)
«Porque é que gosta dele?»
«É a emoção absoluta. Um homem muito corajoso.»
«Quem mais?»
«Céline.»
«Porquê?»
«Arrancaram-lhe as tripas e ele riu-se, e fez com que eles se rissem também. Um homem muito corajoso.»
(..)
«Hemingway?»
«Não.»
«Porquê?»
«Demasiado terno, demasiado sério. Um bom escritor, frases interessantes. Mas para ele a vida foi quase uma guerra total. Nunca saía, nunca dançava.»

A última consideração parece contraditória com a alusão anterior ao mesmo escritor. Bukowski era mais esquivo do que parecia. E a páginas 247, novamente uma referência aparentemente contraditória. Desta feita, a Céline (nome de alucinação no extravagante romance Pulp):

Refiro-me ao Voyage ao bout de le nuit. Depois deste livro, ele perdeu a mão, tornou-se fraco, começou a enganar os editores e os seus leitores. É uma verdadeira pena. O seu talento desapareceu.

Já no romance da infância, Ham on Rye, o episódio onde se relata a descoberta do gosto pela leitura nas bibliotecas chega a ser comovente. «O primeiro livro de jeito que encontrei foi de alguém chamado Upton Sinclair. As frases eram simples e falava com raiva». Seguem-se referências sucintas a Sinclair Lewis: «Ele desmontava a hipocrisia inerente às pessoas. Mas faltava-lhe paixão». A Josephine Lawrence, a D. H. Lawrence, a Huxley, a Dos Passos, Dreiser, Sherwood Anderson, e, novamente, Hemingway:

E depois apareceu Hemingway. Que maravilha! Esse sim sabia como escrever uma frase. Era uma alegria. As palavras não aborreciam, punham-me a cabeça a latejar. Se o lêssemos e nos deixássemos levar pela magia, conseguiríamos viver sem dor, com esperança, acontecesse o que acontecesse.

Bukowski relata uma descoberta da infância, é natural que com o tempo a primeira impressão tivesse desvanecido. Seguiram-se os russos Turguenev e Gorky, «G. B. Shaw com a sua mente tacanha sempre a bater no fundo, com aquele seu humor elaborado que no final se tornou um fardo, impedindo-o de sentir alguma coisa, com o seu brilhante discurso transformado em aborrecimento, arranhando a inteligência e os sentidos». Já Pulp, o mais alucinado dos romances de Bukowski, está pejado de referências lacónicas a escritores tais como Céline, Faulkner, Carson McCullers, Hemingway, Thomas Mann, Kant, Dante e Fante (num diálogo que parece ter surgido de uma ressaca de ácidos)… Mas Pulp passa ao lado deste domínio das considerações críticas, tal como Correios – onde, estranhamente, não encontramos uma única referência às inclinações literárias. Se quisermos encontrar tais referências, o melhor é frequentarmos as colectâneas de contos. Em A Sul de Nenhum Norte, no conto intitulado Classe, desafia Hemingway para um combate de boxe, num episódio que tem qualquer coisa de metafórico:

   Tinha encostado Hemingway contra as cordas. O homem não podia cair. Sempre que começava a cair, endireitava-o de novo com outro soco. Era um massacre. Death in the Afternoon.
   Recuei alguns passos e o sr. Ernest Hemingway caiu de borco, completamente fora de combate.

Há também histórias de escritores obscuros onde vislumbramos protótipos de uma degradação que tem sempre na mira a coragem enquanto virtude, a cobardia como o maior dos vícios. O conto Foi isto que matou o Dylan Thomas é exemplar de uma espécie de código (a)moral onde a crítica se exerce, também, de uma perspectiva autocrítica:

Chamo-me Henry Chinaski e sou poeta, sou profundo, sou magnífico, isto é, tenho colhões, tenho colhões. Bem, é isso mesmo, sim senhor, tenho uns colhões do caralho.
(…)
Mas cautela com as armadilhas, Chinaski, cautelinha. Foi preciso lutar muito durante muito tempo para dominares a palavra como querias, do modo que querias. Não vás permitir que um pouco de adulação e uma câmara de cinema te levam a pôr um pé em falso. Lembra-te do que dizia Jeffers – até os melhores se deixam apanhar, como Deus, quando um dia desceu à terra.
(…)
Marionetti voltou com um gajo do S. F. Chronicle que escreveu na coluna dele que eu sou o melhor contista desde Hemingway. Digo-lhe que está enganado; que não sei quem é o melhor desde o Hemingway, mas que, de certeza, Chinaski não é. Sou demasiado descuidado a escrever. Não trabalho que chegue. Estou muito cansado.

Nas Histórias de loucura normal repetem-se menções a leituras de D. H. Lawrence, Hemingway, Faulkner, Mailer, entre declarações radicalmente heterodoxas: «Estiquei o braço, abri o livro a meio, e comecei a ler o Guerra e Paz do Tolstoi. Nada tinha mudado. Continuava a ser um péssimo livro». E mais: «Falámos sobre Kafka. Dos. Turgenev, Gogol. As secas todas». Perante isto, títulos como Cona e Kant e um lar feliz ou Os grandes poetas morrem em fumegantes tachos de merda são todo um programa. Aparece novamente o mais perturbador dos mestres:

existe actualmente um suspeito menosprezo pelo Hemingway por parte de críticos que não sabem escrever, e o barbaças até escreveu coisas más do meio para o final, mas a cabeça dele começava a desaparafusar-se, e mesmo assim fazia com que os outros parecessem meninos da escola a levantar a mão para pedir licença para um chichizinho literário.

A poesia também não escapa:

aí passadas umas 3 ou 4 cervejas e um banho e depois de ter tentado ler uns livros de poesia por lá, achando-os naturalmente não muito bem escritos, os livros puseram-me a dormir: Pound, Olson, Creeley, Shapiro.

Ou, mais benevolente:

quase todos os grandes nomes morreram recentemente: o Frost, o cummings, o Jeffers, o W. C. Williams, o T. S. Eliot, os restantes. há umas noites, o Sandburg. (…) o Lowell é suficientemente interessante para não nos pôr a dormir, embora suficientemente difuso para não ser perigoso. as primeiras ideias que nos vêm à cabeça após lermos a obra dele são: este menino nunca falhou uma refeição nem nunca teve um pneu furado nem uma dor de dentes. o Creeley é uma similitude próxima, e imagino que os poderes instalados tenham andado algum tempo a equacionar entre o Creeley e o Lowell, tendo finalmente optado pelo Lowell porque o Creeley não parecia ser um chato lá muito bom (…).

São imensas as alusões, menções, referências congéneres nos contos de Charles Bukowski, fazendo esta penetração pelos terrenos do “mexerico literário canalha” pensar num marginal que não era bem um marginal, era antes um solitário que calhou encontrar-se rodeado de indivíduos decepcionantes, mais compenetrados numa ascensão entre pares do que na expurgação de vidas inúteis. Note-se como a coisa aparece explanada num conto de Música para Água Ardente:

Pegou em Resistance, Rebellion and Death… leu algumas páginas. Camus falava sobre angústia e terror e sobre a miserável condição do Homem, mas falava de uma forma tão confortável e floreada… na sua linguagem… que se ficava com a sensação de que as coisas nem o afectavam a ele nem à sua escrita. Por outras palavras, as coisas até podiam estar bem. Camus escrevia como um homem que tivesse acabado de comer um belo jantar de bife com batatas fritas e salada, acompanhado de uma garrafa de bom vinho francês.

Talvez toda a crítica literária devesse ser assim, escritores aludindo a outros escritores nas entrelinhas dos seus contos, poemas, romances. Oferecendo às suas personagens os seus ódios mais estimados, as suas paixões mais secretas. Enquanto leitores, não precisaríamos de muito mais. Apenas uma declaração de gosto autêntica, um juízo afiado. Ou, pelo menos, aparentemente autêntica. A capacidade de dizer gosto ou não gosto sem sentir necessidade de explicar porquê com tratados incompreensíveis, rebuscados, repletos de frases feitas e carregados de muletas jornalísticas. Uma boa frase chegaria, uma ideia em vez de colunas repletas com citações tantas vezes descontextualizadas, truncadas, até mal intencionadas. Enfim, uma crítica que soubesse chamar chato a um chato sem esperar que o chato compreenda porque é chato.


- Mulheres, trad. Fernando Luís, Publicações Dom Quixote, 2.ª edição, Junho de 1992;
- A Sul de Nenhum Norte, trad. Manuel Resende, Relógio d’Água, Outubro de 1997;
- Ham on Rye – Pão com Fiambre, trad. Manuel A. Domingos, Ulisseia, 1.ª edição, Setembro de 2010;
- Histórias de loucura normal, trad. Vasco Gato, Alfaguara, Outubro de 2013;
- Música para Água Ardente, trad. Rita Carvalho e Guerra, Antígona, Março de 2015.

4 comentários:

Luis Eme disse...

Muito bom.

E tens razão, Henrique, é muito mais compreensível esta forma de fazer crítica literária. Sem curvas, falsetes e hipocrisias.

Anónimo disse...

Dê o exemplo.

hmbf disse...

Sem números na agenda.

Anónimo disse...

excelente, obrigado pelo apanhado.