domingo, 23 de agosto de 2015

O MESTRE

Há uma relação de causa e efeito entre a morte de um escritor e a ressurreição dos livros que publicou em vida. Daí que comece a ser hábito, quando morre um escritor, as livrarias reservarem um canto para as obras do defunto. Disponibilizam, desse modo, aos clientes/leitores interessados o labor do finado, geralmente, com etiqueta de desconto. Não demos por isso com o desaparecimento de Ana Hatherly (1929-2015), talvez por não se tratar de uma autora cuja popularidade justificasse a homenagem interesseira. No entanto, títulos como Tisanas (em construção desde 1969) ou os exercícios de auto-análise levados a cabo em Anacrusa, mereciam estar ao alcance dos leitores para que a produção multifacetada de Hatherly não ficasse reduzida à poesia e a experiências mais ou menos inacessíveis. E o que dizer de O Mestre (5.ª edição, Ulisseia, Novembro de 2010), novela singular vinda a lume, pela primeira vez, em 1963?
É certo que Ana Hatherly ficará na história da literatura portuguesa como um dos nomes a quem devemos as primeiras incursões pela chamada poesia experimental, na senda do que no Brasil se verificou com o grupo dos poetas ditos concretos. Mas o experimentalismo português nunca almejou por cá a influência que o concretismo teve no Brasil. Talvez isso explique o interesse brasileiro nesta novela, declarado e explicitado, por Simone Pinto Monteiro de Oliveira, no segundo prefácio à terceira edição. Objecto de discussões académicas, O Mestre originou «artigos, Dissertações de Mestrado e Teses de Doutorado ou de Livre Docência» focados em diferentes aspectos. Por cá, a recepção foi mais discreta. Trata-se, no entanto, de um pequeno livro inesgotável, à semelhança de outros de cariz surrealizante e simbólico que enriquecem a nossa literatura mais heterodoxa. Penso, a título de exemplo, em Apenas Uma Narrativa (1942), de António Pedro, no tratado de Alberto Pimenta intitulado Discurso Sobre o Filho-da-Puta (1977) ou mesmo em Titânia (1994), de Mário Cesariny.
Em qualquer um dos “exemplos” aludidos, a componente mitológica sobressai enquanto território onde a metamorfose do real se legitima. No prefácio à segunda edição de O Mestre, Maria Alzira Seixo afirma que «a mitologia está (…) muito presente no intertexto» da narrativa hatherliana, tratando-se esta de uma «sátira do ensino como círculo vicioso, como entronização da ignorância ou do psitacismo, como figura da autoridade». Já no primeiro prefácio à terceira edição, Silvina Rodrigues Lopes estabelece entre Janus, o deus bifronte, e o Mestre, personagem da novela escrita por Ana Hatherly, uma aproximação de carácter: «não devemos querer desfazer os enigmas». É precisamente este aspecto enigmático o que mais sobressai da interacção entre a Discípula e o Mestre, numa novela pautada pela construção dramática e dialogal, de tipo platónico, mas nada idealista, onde a ambição, a ânsia, a paixão, a pretensão da Discípula, «convencida de que há ideias mestras» (p. 75), colide com o riso do Mestre.
O riso desafiador do Mestre (e de O Mestre) gera frustrações na Discípula, a qual tenderá a considerar o mestre «um falsário, um Judas da Arte» (p. 85) sem respostas para perguntas que exigiriam outra mestria que não apenas a do riso. A simplificação levada a cabo pelo Mestre (que não quer ser tratado enquanto tal) leva a Discípula a um estado histriónico de pura tagarelice, mais atenta aos seus pensamentos, cativa da sua necessidade de afirmação, do que aos gestos simplificadores do seu interlocutor. Múltiplas leituras se tornam possíveis, podendo elas circunscrever-se ao campo das dificuldades de comunicação em contexto pedagógico ou especularem sobre uma sátira anti-malebranchiana onde a Discípula representasse o papel do Ocidente face a um Oriente incarnado na figura Zen do Mestre: «Os Mestres disfarçam rindo e com um ar benévolo, complacente, paternal, batem nos ombros dos discípulos e dizem: / — Mais tarde, quando fordes Mestres, sabereis!» (p. 74)
Alguns aspectos absurdos e excêntricos, quer relacionados com o estado desequilibrado da Discípula, quer desmistificadores do Mestre, temperam a narrativa com um jogo de sedução que parece ter por fim último a queda das máscaras de ambos os protagonistas. Ou, pelo menos, da matéria superficial que os estereotipa. Talvez o conhecimento se manifeste nisto mesmo, nos muros derrubados ou ultrapassados a partir do conflito estabelecido entre duas figuras tipo: a de Mestre, a de Discípulo. E como na relação entre ambos cada um deles vai, de algum modo, assumindo o papel do outro sem deixar de ser “si próprio”. O Mestre sobre os olhos da Discípula: «Os olhos dos discípulos são muito indiscretos — não há nada mais perturbante que a candura. Alguém que nos admira e nos coloca num pedestal é o nosso maior inimigo — a gente nunca tem possibilidade de se apear do plinto e comer amendoins» (p. 96). Um condiscípulo: «Quando dez anos depois a gente encontra o nosso condiscípulo que era o melhor aluno do curso e um exemplo para os outros, descobre que ele é caixeiro numa sapataria. Nada mau» (p. 100).

O tom realista surgiu num país que nunca conseguiu estabelecer entre o ontem e o hoje uma ligação de aprendizagem, estando e sendo a mesma dificultada pelos parâmetros que opõem a Discípula (messiânica) ao Mestre (ausente). De algum modo esta dificuldade metaforiza um país que mantém como caixeiros de sapataria os seus melhores alunos, replicando os mesmos erros, insistindo nas mesmas metodologias, olhando com desdém as atitudes, os gestos, os actos, que livremente se oponham ao statu quo dos discípulos precavidos ante mestres indefesos. É um país que não aprende porque quem está na posição de aprendiz estará eternamente à espera, com tacanha subserviência, que por ele outros decidam o que, afinal, só ele, autonomamente, poderia decidir se aprendesse alguma coisa. Vale a pena ler ou reler, se for caso disso, O Mestre

1 comentário:

MJLF disse...

Gosto muito deste livro, fartei-me de rir quando o li, as perseguições absurdas da discípula ao O Mestre, é demais. saúde e bjs para toda a tribo