Há uma relação de causa e efeito entre a morte de um
escritor e a ressurreição dos livros que publicou em vida. Daí que comece a ser
hábito, quando morre um escritor, as livrarias reservarem um canto para as
obras do defunto. Disponibilizam, desse modo, aos clientes/leitores
interessados o labor do finado, geralmente, com etiqueta de desconto. Não demos
por isso com o desaparecimento de Ana Hatherly (1929-2015), talvez por não se
tratar de uma autora cuja popularidade justificasse a homenagem interesseira.
No entanto, títulos como Tisanas (em construção desde 1969) ou os exercícios de
auto-análise levados a cabo em Anacrusa, mereciam estar ao alcance dos leitores
para que a produção multifacetada de Hatherly não ficasse reduzida à poesia e a
experiências mais ou menos inacessíveis. E o que dizer de O Mestre (5.ª edição,
Ulisseia, Novembro de 2010), novela singular vinda a lume, pela primeira vez,
em 1963?
É certo que Ana Hatherly ficará na história da literatura portuguesa
como um dos nomes a quem devemos as primeiras incursões pela chamada poesia
experimental, na senda do que no Brasil se verificou com o grupo dos poetas
ditos concretos. Mas o experimentalismo português nunca almejou por cá a influência
que o concretismo teve no Brasil. Talvez isso explique o interesse brasileiro
nesta novela, declarado e explicitado, por Simone Pinto Monteiro de Oliveira,
no segundo prefácio à terceira edição. Objecto de discussões académicas, O Mestre
originou «artigos, Dissertações de Mestrado e Teses de Doutorado ou de Livre
Docência» focados em diferentes aspectos. Por cá, a recepção foi mais discreta.
Trata-se, no entanto, de um pequeno livro inesgotável, à semelhança de outros
de cariz surrealizante e simbólico que enriquecem a nossa literatura mais
heterodoxa. Penso, a título de exemplo, em Apenas Uma Narrativa (1942), de António
Pedro, no tratado de Alberto Pimenta intitulado Discurso Sobre o Filho-da-Puta
(1977) ou mesmo em Titânia (1994), de Mário Cesariny.
Em qualquer um dos “exemplos” aludidos, a componente mitológica
sobressai enquanto território onde a metamorfose do real se legitima. No prefácio
à segunda edição de O Mestre, Maria Alzira Seixo afirma que «a mitologia está (…)
muito presente no intertexto» da narrativa hatherliana, tratando-se esta de uma
«sátira do ensino como círculo vicioso, como entronização da ignorância ou do
psitacismo, como figura da autoridade». Já no primeiro prefácio à terceira edição,
Silvina Rodrigues Lopes estabelece entre Janus, o deus bifronte, e o Mestre, personagem
da novela escrita por Ana Hatherly, uma aproximação de carácter: «não devemos
querer desfazer os enigmas». É precisamente este aspecto enigmático o que mais
sobressai da interacção entre a Discípula e o Mestre, numa novela pautada pela
construção dramática e dialogal, de tipo platónico, mas nada idealista, onde a ambição,
a ânsia, a paixão, a pretensão da Discípula, «convencida de que há ideias
mestras» (p. 75), colide com o riso do Mestre.
O riso desafiador do Mestre (e de O Mestre) gera frustrações
na Discípula, a qual tenderá a considerar o mestre «um falsário, um Judas da
Arte» (p. 85) sem respostas para perguntas que exigiriam outra mestria que não apenas a
do riso. A simplificação levada a cabo pelo Mestre (que não quer ser tratado
enquanto tal) leva a Discípula a um estado histriónico de pura tagarelice, mais
atenta aos seus pensamentos, cativa da sua necessidade de afirmação, do que aos
gestos simplificadores do seu interlocutor. Múltiplas leituras se tornam possíveis,
podendo elas circunscrever-se ao campo das dificuldades de comunicação em
contexto pedagógico ou especularem sobre uma sátira anti-malebranchiana onde a
Discípula representasse o papel do Ocidente face a um Oriente incarnado na
figura Zen do Mestre: «Os Mestres disfarçam rindo e com um ar benévolo,
complacente, paternal, batem nos ombros dos discípulos e dizem: / — Mais tarde,
quando fordes Mestres, sabereis!» (p. 74)
Alguns aspectos absurdos e excêntricos, quer relacionados
com o estado desequilibrado da Discípula, quer desmistificadores do Mestre,
temperam a narrativa com um jogo de sedução que parece ter por fim último a
queda das máscaras de ambos os protagonistas. Ou, pelo menos, da matéria superficial
que os estereotipa. Talvez o conhecimento se manifeste nisto mesmo, nos muros
derrubados ou ultrapassados a partir do conflito estabelecido entre duas
figuras tipo: a de Mestre, a de Discípulo. E como na relação entre ambos cada
um deles vai, de algum modo, assumindo o papel do outro sem deixar de ser “si
próprio”. O Mestre sobre os olhos da Discípula: «Os olhos dos discípulos são
muito indiscretos — não há nada mais perturbante que a candura. Alguém que nos
admira e nos coloca num pedestal é o nosso maior inimigo — a gente nunca tem
possibilidade de se apear do plinto e comer amendoins» (p. 96). Um condiscípulo:
«Quando dez anos depois a gente encontra o nosso condiscípulo que era o melhor
aluno do curso e um exemplo para os outros, descobre que ele é caixeiro numa
sapataria. Nada mau» (p. 100).
O tom realista surgiu num país que nunca conseguiu
estabelecer entre o ontem e o hoje uma ligação de aprendizagem, estando e sendo a mesma dificultada pelos parâmetros que opõem a Discípula (messiânica) ao
Mestre (ausente). De algum modo esta dificuldade metaforiza um país que mantém
como caixeiros de sapataria os seus melhores alunos, replicando os mesmos
erros, insistindo nas mesmas metodologias, olhando com desdém as atitudes, os
gestos, os actos, que livremente se oponham ao statu quo dos discípulos
precavidos ante mestres indefesos. É um país que não aprende porque quem está
na posição de aprendiz estará eternamente à espera, com tacanha subserviência, que
por ele outros decidam o que, afinal, só ele, autonomamente, poderia decidir se
aprendesse alguma coisa. Vale a pena ler ou reler, se for caso disso, O Mestre.
1 comentário:
Gosto muito deste livro, fartei-me de rir quando o li, as perseguições absurdas da discípula ao O Mestre, é demais. saúde e bjs para toda a tribo
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