É conhecida a técnica proposta por Tristan Tzara, pseudónimo
do romeno Sami Rosenstock (1896-1963), para a elaboração de um poema dadaísta:
pega-se num jornal e numa tesoura, recorta-se um artigo do jornal, recorta-se
cuidadosamente as palavras do artigo e colocam-se as mesmas num saco, agita-se
suavemente, retiram-se umas a seguir às outras e transcrevem-se
escrupulosamente pela ordem de saída do saco. «O poema parecer-se-á consigo»,
dizia Tzara. Tal como o mestre do dadaísmo, José Anjos (n. 1978) também parece
odiar o senso comum. No seu Manual de Instruções para Desaparecer (Abysmo,
Abril de 2015) dá prosseguimento a alguns dos ensinamentos das vanguardas que
fizeram escola na primeira metade do século XX, sobretudo o dadaísmo e o
surrealismo. Mas no seu primeiro livro cabem igualmente experiências de tipo
concretista e visual, explorações do absurdo com ecos modernistas e futuristas,
não sem que as palavras assumam uma atitude de actualização dessas generalizações
estéticas à luz de uma realidade capaz de estilhaçar qualquer conceptualização
da arte poética.
Podemos dizer que o único ismo da poesia reunida neste
volume de estreia é o de um “delirismo” que se diverte com associações
vocabulares mais significantes do que possa parecer a uma primeira leitura (lírio,
delírio, lirismo...). Na primeira de quatro partes (Dos Lírios), fica desde
logo evidente o distanciamento de uma sobriedade e inteligibilidade que vêm estigmatizando
grande parte da produção poética nacional nas duas últimas décadas. Os poemas
resvalam, por vezes, para um humorismo assumidamente pífio que não é incomum (a
imagem do rato Mickey algemado nas orelhas é apenas um exemplo), noutras
circunstâncias parecem não resistir a discursos intimistas recorrentes: «para
mim seria muito melhor a vida / se pudesse / morrer por alguns momentos / de
vez em quando; // quando me apetece» (p. 17). Ainda assim, logram em alguns
momentos alcançar a expressão de uma disforia que relegam a ironia, o humor, os
artifícios experimentais para o plano do disfarce:
Ícaro TV
Há que sobrevoar o sol
a menos de trinta metros de casa
e perceber os tectos
O que farei então com
tão negro buraco em mim
(não importa a leveza da manhã)
teima em me aproximar do final?
Dormir viver acordar
e morrer
(a vontade gelada)
ao canto da tua cama
em Pequim
Nascer nu no ecrã
do teu rosto
cansado
já sem asas
mas contente por saber
que ainda tenho
duas pernas
A dimensão lúdica desta poesia não é, pois então, um fim em
si mesmo, ela como que suporta nos seus mecanismos um conjunto de imagens
perturbantes que expõem as contradições do ser: «Alguém chega mesmo a dizer /
que agora se respira debaixo / de terra» (p. 19) ou «casacos de lixo panorâmico
para usar depois da dor» (p. 21) ou ainda «planetas impossíveis / tatuados nos
dentes» (p. 28). O segundo conjunto do livro, intitulado Construção, está
composto do IV para o I poema. Trata-se de um gesto formal que induz inversões atípicas
numa sequência que pode ser lida como um único poema de traz para a frente. De
algum modo a sequência invertida repercute na sua forma a materialidade de uma
poesia que não se quer dependente do sentido, muito menos se submete a leituras
literais. É como se ao poeta coubesse aqui a missão auto-imposta de desconstruir
o mito do poema, como a criança que desmonta um objecto para tentar remontá-lo.
As peças espalhadas pelo chão permitirão conjugações que abrirão as portas da
imaginação, podendo o objecto desmontado ser transformado num outro objecto,
numa outra realidade.
Outros Factos Paliativos e Da Vaidade, respectivamente
terceira e quarta partes do volume, reforçam tais ideias mesmo quando recorrem a
figuras de estilo clássicas. Manual de Instruções para Desaparecer é, no
contexto da poesia portuguesa actual, um livro descarrilado. Tem os seus
defeitos, os seus excessos, tropeça aqui e acolá numa vulgaridade dispensável. Mas
ninguém pode retirar-lhe o mérito de procurar uma linguagem diferente da
pastosa melancolia realista dos dias correntes, liberta de constrangimentos estéticos
impostos pela fabriqueta de recensões instalada nos suplementos do costume:
sou o que vejo
só cortando os medos com os dentes
e fazendo dos dedos pás de
madeira incansável e
concêntrica
é que o
homem se consegue ver
e afastar das suas próprias margens
mas cuidado – o homem que mata a sua sombra
fica condenado a olhar para sempre
o seu reflexo inatingível
no lago vertical
2 comentários:
Gostei disso.
Boa.
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