sexta-feira, 9 de outubro de 2015

MANUAL DE INSTRUÇÕES PARA DESAPARECER

É conhecida a técnica proposta por Tristan Tzara, pseudónimo do romeno Sami Rosenstock (1896-1963), para a elaboração de um poema dadaísta: pega-se num jornal e numa tesoura, recorta-se um artigo do jornal, recorta-se cuidadosamente as palavras do artigo e colocam-se as mesmas num saco, agita-se suavemente, retiram-se umas a seguir às outras e transcrevem-se escrupulosamente pela ordem de saída do saco. «O poema parecer-se-á consigo», dizia Tzara. Tal como o mestre do dadaísmo, José Anjos (n. 1978) também parece odiar o senso comum. No seu Manual de Instruções para Desaparecer (Abysmo, Abril de 2015) dá prosseguimento a alguns dos ensinamentos das vanguardas que fizeram escola na primeira metade do século XX, sobretudo o dadaísmo e o surrealismo. Mas no seu primeiro livro cabem igualmente experiências de tipo concretista e visual, explorações do absurdo com ecos modernistas e futuristas, não sem que as palavras assumam uma atitude de actualização dessas generalizações estéticas à luz de uma realidade capaz de estilhaçar qualquer conceptualização da arte poética.
Podemos dizer que o único ismo da poesia reunida neste volume de estreia é o de um “delirismo” que se diverte com associações vocabulares mais significantes do que possa parecer a uma primeira leitura (lírio, delírio, lirismo...). Na primeira de quatro partes (Dos Lírios), fica desde logo evidente o distanciamento de uma sobriedade e inteligibilidade que vêm estigmatizando grande parte da produção poética nacional nas duas últimas décadas. Os poemas resvalam, por vezes, para um humorismo assumidamente pífio que não é incomum (a imagem do rato Mickey algemado nas orelhas é apenas um exemplo), noutras circunstâncias parecem não resistir a discursos intimistas recorrentes: «para mim seria muito melhor a vida / se pudesse / morrer por alguns momentos / de vez em quando; // quando me apetece» (p. 17). Ainda assim, logram em alguns momentos alcançar a expressão de uma disforia que relegam a ironia, o humor, os artifícios experimentais para o plano do disfarce:

Ícaro TV

Há que sobrevoar o sol
a menos de trinta metros de casa
e perceber os tectos

O que farei então com
tão negro buraco em mim
(não importa a leveza da manhã)
teima em me aproximar do final?

Dormir viver acordar
e morrer
(a vontade gelada)
ao canto da tua cama
em Pequim

Nascer nu no ecrã
do teu rosto
cansado

já sem asas

mas contente por saber
que ainda tenho
duas pernas

A dimensão lúdica desta poesia não é, pois então, um fim em si mesmo, ela como que suporta nos seus mecanismos um conjunto de imagens perturbantes que expõem as contradições do ser: «Alguém chega mesmo a dizer / que agora se respira debaixo / de terra» (p. 19) ou «casacos de lixo panorâmico para usar depois da dor» (p. 21) ou ainda «planetas impossíveis / tatuados nos dentes» (p. 28). O segundo conjunto do livro, intitulado Construção, está composto do IV para o I poema. Trata-se de um gesto formal que induz inversões atípicas numa sequência que pode ser lida como um único poema de traz para a frente. De algum modo a sequência invertida repercute na sua forma a materialidade de uma poesia que não se quer dependente do sentido, muito menos se submete a leituras literais. É como se ao poeta coubesse aqui a missão auto-imposta de desconstruir o mito do poema, como a criança que desmonta um objecto para tentar remontá-lo. As peças espalhadas pelo chão permitirão conjugações que abrirão as portas da imaginação, podendo o objecto desmontado ser transformado num outro objecto, numa outra realidade. 
Outros Factos Paliativos e Da Vaidade, respectivamente terceira e quarta partes do volume, reforçam tais ideias mesmo quando recorrem a figuras de estilo clássicas. Manual de Instruções para Desaparecer é, no contexto da poesia portuguesa actual, um livro descarrilado. Tem os seus defeitos, os seus excessos, tropeça aqui e acolá numa vulgaridade dispensável. Mas ninguém pode retirar-lhe o mérito de procurar uma linguagem diferente da pastosa melancolia realista dos dias correntes, liberta de constrangimentos estéticos impostos pela fabriqueta de recensões instalada nos suplementos do costume:

sou o que vejo

só cortando os medos com os dentes
e fazendo dos dedos pás de
madeira incansável e
concêntrica
é que o
homem se consegue ver
e afastar das suas próprias margens

mas cuidado – o homem que mata a sua sombra
fica condenado a olhar para sempre
o seu reflexo inatingível


no lago vertical