domingo, 18 de outubro de 2015

UM DIA


Um dia não escreverei mais. Um dia não escreverei mais esta palavra mais. Um dia não escreverei mais este texto. Porque um dia não escreverei. O que já está escrito. Nem mais nem menos. Porque este porque não pertence a este jogo. Um dia não escreverei mais este poema.
Agora chega uma palavra que não é mais esta que escrevo. Porque a palavra esta não é esta nem um dia é o dia em que sequer escreverei alguma coisa mais. Alguma coisa é que é semelhante a algures.
Muda-se a semelhança muda-se o disfarce muda-se o espaço no espaço de uma só folha de papel. Escrevo. Já não escrevo agora o que comecei a escrever aqui algures. Porque não se escreve duas vezes a mesma coisa e muito (muito) menos a mesma palavra (palavra) porque. Já não há causa (coisa) alguma que motive algures o que alguma vez foi/é sentido durante a escrita da mesma (mesma) palavra.
Escrevo esta palavra para que se veja outra palavra. Assim porque é diferente o sentido (sentimento) é diferente o sentimento (sentido). Isto porque a razão não se aprisiona nem (nem) numa metáfora é liberta. E muito menos eu sei o que escrevo quanto mais porque.
E no entanto prossigo (persigo) na expectativa de saber porque. Porque não é antes (mas) depois que o texto é. A maior densidade liquefaz-se como ainda contida dentro da caneta. Há uma subtil esperança em tudo o que aí se contém. Que isto já esteja escrito incluindo a dúvida de que já esteja escrito. A originalidade impregna-se do desprezo do emprego da razão que está obviamente longe (longe) do sentido apolíneo do polo oposto escrito com as mesmas letras que estão dentro líquidas do corpo da caneta. Isto é um anacronismo porque as canetas já não escrevem nem já (já) nem antes (nem) alguma vez escreveram tal como nas rochas paleo-neo-líticas duras demais escuras de mais para uma tinta preta. Para uma tinta branca que agora se espalha nas teclas informáticas e os electrões viajam.
Um ponto final ficaria aqui bem. Ponto porque final. Final porque se recomeça sempre a despalavra e os extremos nunca se trocam mas os meios confundem-se pelos pontos.
Um dia não escreverei mais. Um  dia mais e não escreverei. Porque hoje é um dia que se transfere para um outro dia. Um lugar que se adia para outro ódio. Uma hora liberta para outra fuga. Um centímetro extenso de galáxias expansivas. Um infinitamente pequeno de sentimentos perfeitamente claros e inexplicáveis. Um dia não escreverei mais esta palavra mais. Nem esta palavra menos. Nem menos esta palavra nem. Um dia nem. (Nem este texto faz parte deste texto). Nem.


E. M. de Melo e Castro (n. 1932), in Entre o Rigor e o Excesso: Um Osso (1994). «Ao lado de nomes como António Aragão, Ana Hatherly e Salette Tavares, entre outros, Melo e Castro foi o principal dinamizador desse movimento vanguardista que - sob influência do concretismo brasileiro, de Décio Pignatari e do grupo «Noigrandes» e sintonizado com as tendências experimentais da década no campo da música, das artes plásticas e do cinema - se propôs fazer uma renovação dos pressupostos críticos (ainda contaminados pelas polémicas das décadas anteriores como a que opôs o neo-realismo ao surrealismo) em que assentava a cultura portuguesa. (...) Se nos Ideogramas e Sintagramas do início dos anos 60 é ainda dos limites gráficos da linguagem verbal, da relação rítmica entre significado e significante, que se trata, os seus trabalhos ao longo da produção das décadas seguintes mostram sucessivas desmaterializações a que não são alheias as novas condições tecnológicas entretanto democratizadas, como o filme, ou a imagem digital. (...) Buscando a síntese ou um lugar de convergência entre o visual e o verbal, entre o semântico e o sígnico, a obra de Melo e Castro acompanha a dissolução das fronteiras entre os campos artísticos que caracteriza a contemporaneidade artística» (Celso Martins, Expresso, 2006).

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