Em 1971, William S. Burroughs publicou um pequeno ensaio
intitulado Electronic Revolution (A Revolução Electrónica, Vega, trad. José
Augusto Mourão, 1.ª edição 1994) onde defendia a tese segundo a qual «a palavra
escrita foi literalmente um vírus que tornou possível a palavra falada». Esta
ideia da linguagem enquanto vírus, recuperada e adaptada por Laurie Anderson no
álbum Big Science (1982), introduz entre a escrita e a fala um poder que
Burroughs se encarregará de exercitar aos limites com a famosa técnica do
cut-up (colagem de vozes, intersecções vocabulares, sobreposições de sons). O escritor norte-americano cria que esta misturada poderia exercer
sobre os ouvintes/leitores uma espécie de hipnotismo, oferecendo ao escritor um
poder desmistificador junto das ilusões incutidas pelos mass media: «Ao fazer
isto, tem-se uma vantagem que o adversário não tem. Ele tem de esconder as suas
manipulações. Isso não nos é necessário. (…) As técnicas de cut-up poderiam
submergir os mass media na ilusão total». Como é óbvio, estamos no campo da
experimentação sobre os factos, ao qual não é alheia nem a filosofia da linguagem nem os diversos domínios da psicologia e da psicanálise. O problema está em como relacionar os factos com a linguagem. É sempre esse o problema. Tal como Heidegger desenvolveu várias páginas
para nos dizer que uma coisa é uma coisa, também nós poderíamos analisar exaustivamente
o conceito de facto para chegar à conclusão de que um facto é um facto. Mas o que distingue o facto da ilusão? Muito provavelmente, o modo como cada um
de nós recebe a mensagem e a subjectiviza. Ou seja, o modo como cada um de nós
se posiciona hermenêuticamente face a um determinado dado passível de
interpretação. Cada um de nós, claro está, na sua subjectividade cultural. A poeta brasileira Marília Garcia (n. 1979) parece interessada
em testar esse posicionamento do leitor face à poesia que tem para nos oferecer
num livro como Um Teste de Resistores (Mariposa Azual, Janeiro de 2015), título
que aponta para uma putativa noção de poesia enquanto resistência: «e eu não
sei para que serve a poesia / e eu penso na resistência e nos resistores na
eletricidade / na eletrônica nos chips nos codecs / e nos testes os testes
todos os testes para sobreviver» (p. 22). Digo putativa na medida em que apenas
em parte podemos considerar a sua poesia a partir de um lugar de resistência. Tal
como os resistores, cuja principal função é converter energia eléctrica em
energia térmica, a poesia foi sendo tradicionalmente uma conversão do
sentimento na palavra emotiva. Onde ela era improvável, vislumbramos uma metáfora. Ora, o que este livro testa é precisamente essa
conversão. Testa ao limite a palavra poética enquanto exclusiva do território lírico,
extravasando todos e quaisquer limites fixados pela tradição. Formada em
Letras, Marília Garcia trabalhou no mercado editorial e é tradutora e co-editora,
com Angélica Freitas, Fabiano Calixto e Ricardo Domeneck, da revista de poesia
Modo de Usar & Co, está dotada de um conhecimento académico que os seus
poemas interrogam com discursos onde os problemas da comunicação e da linguagem
marginalizam a emotividade. Na longa sequência de abertura, intitulada blind
light, o leitor depara-se com um discurso directo e até confessional — «na hora
de responder às perguntas eu costumo me atrapalhar / acho que não escuto o que
as pessoas estão dizendo» (p. 21) — sobre o labor poético, com referências
biográficas e alusões pessoais aos problemas que a tradução dos seus poemas levanta, à participação
em encontros universitários, à publicação da Modo de Usar & Co, enviando-nos
para documentos partilhados on-line, aludindo a imensos autores (seria exaustivo e inútil mencioná-los a todos aqui) com os quais o seu trabalho se
vai concretizando através de um processo contínuo de aprendizagem. Os textos de
Um Teste de Resistores são tudo menos convencionais, provocando-nos a dúvida
sobre o que deveremos chamar a tais corpos tão estranhos. Se lhes chamarmos
poemas, podemos ter em mente, por exemplo, as cartas de Antonin Artaud, as
quais, sendo cartas, não deixavam de ser poemas. Podemos pois pensar, de igual
modo, que sendo ensaios de raiz diarística estes textos não deixam igualmente
de ser poemas. Apesar de toda a sua literalidade, deixam-nos na suspeição de
que por detrás do evidente e do concreto há o tal vírus da linguagem que nos
obriga a subverter os parâmetros segundo os quais costumamos levar a cabo a
leitura. E isso também é poesia.
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