sábado, 24 de outubro de 2015

UM TESTE DE RESISTORES

Em 1971, William S. Burroughs publicou um pequeno ensaio intitulado Electronic Revolution (A Revolução Electrónica, Vega, trad. José Augusto Mourão, 1.ª edição 1994) onde defendia a tese segundo a qual «a palavra escrita foi literalmente um vírus que tornou possível a palavra falada». Esta ideia da linguagem enquanto vírus, recuperada e adaptada por Laurie Anderson no álbum Big Science (1982), introduz entre a escrita e a fala um poder que Burroughs se encarregará de exercitar aos limites com a famosa técnica do cut-up (colagem de vozes, intersecções vocabulares, sobreposições de sons). O escritor norte-americano cria que esta misturada poderia exercer sobre os ouvintes/leitores uma espécie de hipnotismo, oferecendo ao escritor um poder desmistificador junto das ilusões incutidas pelos mass media: «Ao fazer isto, tem-se uma vantagem que o adversário não tem. Ele tem de esconder as suas manipulações. Isso não nos é necessário. (…) As técnicas de cut-up poderiam submergir os mass media na ilusão total». Como é óbvio, estamos no campo da experimentação sobre os factos, ao qual não é alheia nem a filosofia da linguagem nem os diversos domínios da psicologia e da psicanálise. O problema está em como relacionar os factos com a linguagem. É sempre esse o problema. Tal como Heidegger desenvolveu várias páginas para nos dizer que uma coisa é uma coisa, também nós poderíamos analisar exaustivamente o conceito de facto para chegar à conclusão de que um facto é um facto. Mas o que distingue o facto da ilusão? Muito provavelmente, o modo como cada um de nós recebe a mensagem e a subjectiviza. Ou seja, o modo como cada um de nós se posiciona hermenêuticamente face a um determinado dado passível de interpretação. Cada um de nós, claro está, na sua subjectividade cultural. A poeta brasileira Marília Garcia (n. 1979) parece interessada em testar esse posicionamento do leitor face à poesia que tem para nos oferecer num livro como Um Teste de Resistores (Mariposa Azual, Janeiro de 2015), título que aponta para uma putativa noção de poesia enquanto resistência: «e eu não sei para que serve a poesia / e eu penso na resistência e nos resistores na eletricidade / na eletrônica nos chips nos codecs / e nos testes os testes todos os testes para sobreviver» (p. 22). Digo putativa na medida em que apenas em parte podemos considerar a sua poesia a partir de um lugar de resistência. Tal como os resistores, cuja principal função é converter energia eléctrica em energia térmica, a poesia foi sendo tradicionalmente uma conversão do sentimento na palavra emotiva. Onde ela era improvável, vislumbramos uma metáfora. Ora, o que este livro testa é precisamente essa conversão. Testa ao limite a palavra poética enquanto exclusiva do território lírico, extravasando todos e quaisquer limites fixados pela tradição. Formada em Letras, Marília Garcia trabalhou no mercado editorial e é tradutora e co-editora, com Angélica Freitas, Fabiano Calixto e Ricardo Domeneck, da revista de poesia Modo de Usar & Co, está dotada de um conhecimento académico que os seus poemas interrogam com discursos onde os problemas da comunicação e da linguagem marginalizam a emotividade. Na longa sequência de abertura, intitulada blind light, o leitor depara-se com um discurso directo e até confessional — «na hora de responder às perguntas eu costumo me atrapalhar / acho que não escuto o que as pessoas estão dizendo» (p. 21) — sobre o labor poético, com referências biográficas e alusões pessoais aos problemas que a tradução dos seus poemas levanta, à participação em encontros universitários, à publicação da Modo de Usar & Co, enviando-nos para documentos partilhados on-line, aludindo a imensos autores (seria exaustivo e inútil mencioná-los a todos aqui) com os quais o seu trabalho se vai concretizando através de um processo contínuo de aprendizagem. Os textos de Um Teste de Resistores são tudo menos convencionais, provocando-nos a dúvida sobre o que deveremos chamar a tais corpos tão estranhos. Se lhes chamarmos poemas, podemos ter em mente, por exemplo, as cartas de Antonin Artaud, as quais, sendo cartas, não deixavam de ser poemas. Podemos pois pensar, de igual modo, que sendo ensaios de raiz diarística estes textos não deixam igualmente de ser poemas. Apesar de toda a sua literalidade, deixam-nos na suspeição de que por detrás do evidente e do concreto há o tal vírus da linguagem que nos obriga a subverter os parâmetros segundo os quais costumamos levar a cabo a leitura. E isso também é poesia. 

Sem comentários: