quinta-feira, 29 de outubro de 2015

VIDA PRÓPRIA


Se não estiveres aí, é
como se estivesses, digo
na mesma o que tiver para dizer:
dormem as barcas nas enseadas,
rebenta a luz nas onze horas
da noite, um livro insignificante
chama do nada, como ao acender
de um cigarro distraído, adoeces
sem saber e a televisão ladra,
de madrugada, com um filme
abrasivo. Há pelo menos um
anormal que continua a pensar
em cenários. Deixá-lo a pensar.
Descanso em saberes
que te dispenso, te convoco
para a tarefa cruel de juntar
sentidos, como numa cerimónia
calculada para anéis e grinaldas,
com limusina e inimigo, camélias
onde largo, displicente, algum
desdém. Proponho
que sigas em frente, dobres
o teu enorme passo, vás
aos cafés onde se pode fumar,
não tenho nada a ver com isso.
Calo, na mesma, o que devo
dizer: tenho metade em ti,
sou todo teu. O que é certo
é que nunca mais te livras
de ir queimar ao sol, pelo menos,
alguma sombra de que precisas.
Vida imprópria.


Manuel Fernando Gonçalves (n. 1951), in A Realidade dos Factos (2008). Revelado em meados dos anos 1980, pratica, desde a primeira hora, uma poesia que desafia o leitor «a entrar no jogo de ficções que toda a poesia acaba por ser por mais confessional que se apresente» (Fernando J. B. Martinho, in Colóquio Letras). «Esta poesia é determinada pelas condições pragmáticas do discurso, pelo facto de haver sempre um interlocutor (...). O que há é uma espécie de jogo teatral, em que a vida se move entre as sombras e os fantasmas, entre o mundo e a casa, e o jogo do mundo é para ser observado com ironia. Uma ironia que nada tem de interrogação infantil e, pelo contrário, torna manifesto o carácter niilista da reflexividade» (António Guerreiro, Expresso). 

2 comentários:

Luis Eme disse...

Grato, não só pelo Vitor, mas por todos os poetas (muitos desconhecidos para mim) que divulgas por aqui.

Luis Eme disse...

(Manuel Fernando, claro)