quarta-feira, 25 de novembro de 2015

A LEI (PARTE V DE BIOGRAFIA)


we were suddenly aware of ourselves
standing there, staring at the future
blindfolded.
Deborah Eisenberg

Em criança fui um homem sozinho numa casa de mulheres.
A excepção do meu pai, à excepção do meu avô e do meu irmão,
fui um homem sozinho numa casa de mulheres
que se vestiam de vermelho e, em segredo,
usavam nomes de princesas antigas
para que o sonho coubesse todo na sua absurda forma de cristal.
Às vezes sozinho, sem nunca as entender,
falava a sua própria língua, como se fosse acreditar sempre
que a minha mãe e as minhas irmãs inventaram, só para elas,
todo o pranto e todo o silêncio que cabem no mundo.

Um dia Raquel ensinou-me a brincar com bonecos vestidos de púrpura
e a imaginar neles Hannah, em oração, quarenta anos mais nova,
na sua cama rodeada de arame farpado, a apaixonar-se pelo senhor F.
e pelos seus olhos cinzento-anjo.
Foram de longe os anos mais felizes da minha vida,
os que antecederam a clausura do Inverno no meu peito,
no dia em que o meu avô morreu.

Só então chorei, quando vi o meu pai aproximar-se do corpo
para o tapar, antes que os corvos lhe ensinassem
o que há que fazer àqueles que morrem.
Mal se suspendeu o céu fez-se negro o seu rosto.
Comprei-o, comprámo-lo caro com o trabalho doloroso das nossas mãos.
Aquietaram-se as árvores, o vento, as mudanças
e os pássaros puderam enfim repousar do seu voo de séculos.
Trinta dias de sol e secura se seguiram e, à primeira gota de chuva,
o meu pai abriu as portas de casa e houve festa.
O meu pai abriu as portas de casa e saíram as mulheres
e entraram os senhores da lei. Disseram
Sempre que invocarmos o teu nome virás a nós e nos abençoarás
Nessa mesma noite ensinaram-me
que Deus desenha o tempo à régua e nunca ao compasso
e que para Ele os olhos têm horizonte.

Anos mais tarde, quando já nenhum homem se importava
que chovesse ou não, deixei os meus antepassados sozinhos,
uns com os outros, a escrever e a pensar a lei e o sangue,
como se isso fosse pelo menos metade da vingança que o Senhor nos merece.
Uma fé inexistente talvez tivesse sido uma fé melhor,
no extenso bosque do meu peito negro,
com o meu avô, com o meu pai e com os seus olhos vazios virados para Leste.


David Teles Pereira (n. 1985), in Biografia (2010). Não é comum um autor com tão pouca e restrita obra publicada alcançar a atenção que David Teles Pereira conseguiu nos media mais atentos à produção poética nacional. Co-fundador, com Ana M. P. Antunes e Diogo Vaz Pinto, da revista Criatura, começou por aí afirmar uma poesia que, aliando o poema longo a versos incisivos, se afastava do tónico naturalista predominante na geração anterior à sua - e do qual David Teles Pereira se declarou publicamente devedor. Biografia acentuou a opção por um pendor narrativo mais interessado em ficcionar a realidade do que em testemunhar os diversos aspectos do quotidiano, num registo onde a auto-ironia, a par da assimilação de múltiplas influências internacionais, gera retratos genéricos de um tempo onde a identidade resulta de uma complexa reunião de estilhaços multiculturais, sociais e políticos. Com o primeiro verso daquele que é, porventura, o seu poema mais citado — «Sou filho daqueles que lutaram no dia 25 de Abril de 1974» (in Elegia Cor-de-Rosa) —, o próprio resolveu dialogar com o primeiro verso do seu único volume individual publicado até à data — «Sou bisneto de um tal Ishmael Veilchenduf, judeu germânico-falante» —, denotando um autocentrismo estético que o futuro se encarregará de aprofundar ou desfazer. 

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