Tem sido gratificante assistir à publicação de livros que
nos oferecem perspectivas diferentes sobre o meio literário português antes da
Revolução de Abril, ora focados em personalidades distintas e influentes, ora
extravasando as fronteiras do establishment para procurar compreender como,
muitas vezes, foi nas margens e nos movimentos paralelos que se lançaram as
sementes que viriam a desabrochar no que hoje exerce influência. Podemos e devemos destacar obras como
Alexandre O’Neill – Uma Biografia Literária (Dom Quixote, 2007), por Maria
Antónia Oliveira, ou Puta que os Pariu! A Biografia de Luiz Pacheco
(Tinta-da-China, 2011), assim como O Botequim da Liberdade (Casa das Letras,
2013), de Fernando Dacosta, este último empenhado em recuperar o espírito das
tertúlias animadas por Natália Correia. Natália, O’Neill e Pacheco eram da
mesma geração, a dos que nasceram na década de 1920, tendo cada um à sua
maneira conquistado um lugar na história da literatura portuguesa pelo que
escreveram. Quem raramente conquista esse lugar é aquele que publica, ou seja,
a figura do editor, pelo que a publicação de & etc — Uma Editora no Subterrâneo (Letra Livre, 2013) marcou uma diferença notável. Obra mais de
celebração do que de investigação sociológica, demarcou, no entanto, com
absoluta clareza o terreno de resistência à mercantilização do livro operado
pelo projecto de Vitor Silva Tavares. Bem mais complexa e desafiante é a
história que se pretenda fazer das Edições Afrodite, pelo que o trabalho
exaustivo levado a cabo por Pedro Piedade Marques em Editor Contra: Fernando
Ribeiro de Mello e a Afrodite (Montag, Novembro de 2015) só pode merecer o
nosso mais longo e entusiástico aplauso. As palmas não surgem aqui por acaso,
já que foi pelas palmas que o editor Fernando Ribeiro de Mello começou por dar
nas vistas. Recorde-se A Técnica do Golpe Literário (Montag, Maio de 2014),
aperitivo para a edição que agora nos ocupa, sobre um tão famoso quanto
polémico recital organizado por Ribeiro de Mello quando ainda não era editor.
Vitor Silva Tavares, um dos implicados, conheceu o futuro editor nessa sessão,
e sobre ele afirma, em discurso directo e emocionado: «O Ribeiro de Mello marca
uma maneira de estar de um certo tipo da sociedade portuguesa no tempo
português de então, onde ele se destaca porque era um homem-espectáculo. Este
gajo, nos Estados Unidos, tinha feito uma carreira!... Usava quase sempre um
colete, quando já ninguém usava colete em Lisboa. O seu lado conservador
traduzia-se apenas na maneira de vestir, porque de resto ele não era um tipo “antiquado”,
à século XIX, como escreve a Ana Hatherly. Não havia nada de novo debaixo do
sol. O Ribeiro de Mello apercebeu-se, teve a intuição, e nisso, sim senhor, foi
mesmo um editor. O editor pode não ser um rato de biblioteca, ele tem é de
saber captar o trabalho dos ratos de biblioteca, e ter a intuição para dizer: “hmm,
isto cheira-me…”. Quer dizer: para “isto” tenho público» (p. 296). Portanto,
onde faltava cultura literária sobejava intuição. E, já agora, ousadia, uma
inclinação incorrigível para a provocação, coragem, uma tremenda coragem. Só
isso explica as opções antagónicas, as contradições, as decisões arriscadas e a
dúvida. Qualquer amante de livros sabe o quão disputadas são nos alfarrabistas as
publicações da Afrodite, pela beleza luxuriante das obras, pela inovação em
vários domínios (literário, gráfico, design, ilustração…), pela capacidade de
risco num tempo em que, de facto, tudo se arriscava. Em 1965, a editora arranca
com uma edição algo tosca do Kama-Sutra. Logo a seguir, a Antologia de Poesia
Portuguesa Erótica e Satírica. Já em 1966, A Filosofia na Alcova de Sade. Tendo
por elemento condutor a temática sexual, estes livros rapidamente proibidos e
apreendidos levaram a tribunal o editor e outros implicados, entre os quais se
contavam Natália Correia, Luiz Pacheco, Herberto Helder ou o ilustrador João
Rodrigues, que acabaria por se suicidar a 10 de Maio de 1966. A história da
Afrodite antes do 25 de Abril será a história de um editor empenhado na
revolução sexual, fazendo tudo para provocar convulsões na “feira cabisbaixa”,
com lançamentos e acções promocionais polémicos, mas que lhe garantiam um
sucesso comercial inegável. A questão há-de pois colocar-se: espectáculo e
marketing ou literatura? Teriam as acções de Ribeiro de Mello uma intenção meramente
mercantilista ou haveria nelas um genuíno móbil revolucionário? Certo é que se
no período da ditadura o catálogo fica sobretudo marcado pela temática sexual,
já após a Revolução a opção seria pelos conteúdos políticos desafiadores do
ambiente então predominante. O alvo agora eram os comunistas, vistos à lupa do
editor como indivíduos conservadores e inimigos da liberdade. Começam a aparecer
os primeiros livros com panorâmicas críticas da então URSS, culminando a audácia
com uma edição acrítica do Mein Kampf em 1976. Repare-se no contraste quando,
voltados para o antes, encontramos no catálogo da Afrodite livros tais como o
Anti-Duhring (1971), de Engels, ou A Sociedade do Espectáculo (1972), de
Debord. Quem mergulhe hoje no catálogo das Edições Afrodite, e quem o percorra auxiliado
pela história fixada por Pedro Piedade Marques, perceberá que no caminho percorrido
por Fernando Ribeiro de Mello existiu apenas uma dominante: o desrespeito por
todos os sentidos proibidos. Isso lhe devemos enquanto leitores e cidadãos,
sobretudo num país onde a sinalética do respeitinho e das proibições nos foi e
vai conduzindo invariavelmente para um atraso cultural considerável face às
experiências que nos chegam do exterior. Editor Contra é uma obra inevitável se
quisermos compreender o meio cultural e literário do nosso país. Com um miolo
essencialmente articulado por Pedro Piedade Marques, conta com testemunhos de
Vitor Silva Tavares, Aníbal Fernandes, Eduardo Batarda e Nuno Amorim, aos quais
se juntam três cartas de Luiz Pacheco e um panfleto do próprio Ribeiro de Mello
a propósito de uma querela travada com Mário Cesariny. Há ainda uma útil
cronologia de edições. Igualmente útil é a profusa ilustração do livro, a qual
oferece a quem desconheça uma ideia da riqueza que os livros da Afrodite
acolhiam.
2 comentários:
Vou acreditar em ti. :)
Acredita que é um grande e belo livro.
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