Arriscando a inutilidade de um esforço de exactidão a
despeito da historiografia Dada, podemos afirmar, sem mácula de maior, que em
2016 comemoramos o centenário desse movimento revolucionário do início do século
passado. A cronologia dos acontecimentos diz que a 5 de Fevereiro de 1916 foi inaugurado
por Hugo Ball o Cabaret Voltaire, casa de espectáculos situada em Zurique onde,
ente ouros, indivíduos tais como o próprio Ball, Emmy Hennings, Hans Arp,
Tristan Tzara, Richard Huelsenbeck e Marcel Janco deram vazão ao ímpeto criativo
que os afastava da destrutiva Primeira Grande Guerra. Três dias depois, alguém
terá descoberto o nome Dada enquanto signo representativo do que ali se
passava. Criatura sem criador, embora com diversos profetas, Dada queria dizer
tudo onde nada significava, ou seja, pretendia dizer nada onde tudo se fazia
incluir. Basicamente, era a expressão de um ímpeto criativo onde a
espontaneidade acolhia individualidades controversas e reunia sob o mesmo tecto
da liberdade e da contracultura experiências desafiadoras da moral instalada e dos costumes, bons
para alguns, maus para outros, reinantes. Nesse mesmo ano da graça de 1916 vêm
a lume o número único de Cabaret Voltaire, o primeiro e o segundo volumes da
Colecção Dada — A Primeira Aventura Celeste do Sr. Antipirina, por Tzara, e
Orações Fantásticas, por Huelsenbeck, com xilogravuras de Arp —, mas também as
primeiras querelas, os primeiros afastamentos, as primeiras cisões. Daí que
seja contraproducente olharmos para Dada como um grupo, sendo porventura preferível
interpretá-lo enquanto movimento eruptivo do qual surdiram manifestos e expressões
criativas absolutamente revolucionárias no contexto artístico internacional. De
tal modo revolucionárias que faz hoje sentido pensar toda uma produção artística
antes e depois de Dada, para o qual contribuíram fortemente os “actos
subversivos” de Duchamp e Picabia. Basta pensarmos no famigerado urinol de
Marcel Duchamp apresentado no Salão dos Independentes, baptizado de A fonte e
assinado por Richard Mutt, de pronto excluído da exposição por aqueles que
eram, à época, os mais livres dos artistas de salão. Os chamados dadaístas
tinham, pois, a capacidade de afrontar os limites da sua própria acção, não
reconhecendo limites à contradição e, sobretudo, à provocação de rupturas
das quais se esperava pouco mais do que, por uma lado, riso, por outro, um
passo em frente na transformação de uma sociedade ensimesmada. Ao instinto de
ruptura do movimento Dada podemos fazer equivaler esse momento de crise pensado
pela epistemologia kuhniana, momento crepuscular, algures entre o paradigma e a
revolução, do qual algo novo tenderá a surgir. Dada — História de uma Subversão
(Antígona, Novembro de 2015), com tradução de José Miranda Justo, oferece-nos o
enquadramento, pelas penas de Henri Béhar e Michel Carassou, desta aventura que
só não diremos libertária, refractária, ecléctica ou sincrética por nela a
afirmação do indivíduo pelo indivíduo refutar qualquer tentativa de agregação
ideológica, estética, axiológica. Evitemos, por isso, o facilitismo das
considerações redutoras. Se havia uma forte componente lúdica em Dada, a sua
actividade não se esgotava numa brincadeira inconsequente. A confundir-se com
jogo, foi, muitas vezes, uma roleta russa com as suas vítimas inevitáveis. «Movimento
de contornos incertos, variável no tempo e no espaço, Dada agregou a si
personalidades que lhe traziam os seus talentos, as suas fúrias e as suas
execrações durante o tempo de uma acção colectiva, sem que por isso se lhe
sentissem absolutamente ligados. De tal modo que aí vamos encontrar um
construtivista, como Van Doesburg, ou um dos primeiros inventores da arte
abstracta, como Arp, perfeitamente à vontade dentro do quadro libertário de
Dada. Outros, em Berlim por exemplo, serão simultaneamente expressionistas e
dada ou, em Mântua, dada-futuristas, enquanto em Paris se falará da preexistência
do surrealismo, sob a forma da escrita automática, no momento da maior
actividade de Dada» (pp. 38-39). Exemplar na digressão que propõe ao leitor,
esta história atravessa os vários domínios que levaram o movimento da
descoberta à acção e desta à subversão, focando as relações outrora muito mais
conspícuas entre actividade artística e actuação política, as preocupações com
um fundamentação filosófica de base, o frenesim criativo alicerçado na
contestação, na revolta e, sobretudo, num genuíno instinto terrorista incapaz
de se adaptar à lógica de uma linguagem civilizacional degenerada em opressão e
tirania. Os escândalos, acredite-se, foram apenas a face caricata da destruição
operada por estes indivíduos. «Respeitando os códigos formais do discurso público,
Tzara resume as ideias sustentadas ao longo da aventura dadaísta no momento em
que esta chega ao fim. Ao mesmo tempo que adianta que Dada não tem princípios e
que, preconizando a relatividade de todas as coisas e de todos os juízos, não
tem de dar explicações, Tzara recorda o que constituía o estado de espírito do
Movimento: a espontaneidade, a incoerência primeira do homem, a simplicidade
original, a recusa de toda a reconstrução lógica, a expressão intensa da
personalidade» (p. 190).
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