1
Palavras nocturnas
murmuradas
palavras como borboletas
ofuscadas
palavras de amor
afogadas
na madrugada nascente
2
Angústia clara
de cinzas dispersas
esta mesa taças copos
e o teu rosto do outro lado
longe longe
As tuas mãos
peixes opacos
perdidos no fumo do cigarro
do outro lado
longe longe
do outro lado
3
Em águas profundas
o silêncio do teu rosto
afunda palavras
flores perdidas
na calma parada
Docemente o sol
nasce nas minhas mãos
4
Se alguém hoje te beijar
esse alguém tem a minha boca
eu serei todos os rostos
de olhos ávidos
serei a própria noite
que te apertará a garganta
como um assassino
até que a manhã te leve e te adormeça
longe de mim
5
Encontros que não marcaste
em ruas que desconheces
eu esperarei
até que as noites deslizem
sobre mim
e eu fique transformada
em árvore
6
Eu hei-de ser um dia
para ti
espuma e vento
e talvez uns olhos fechados.
Mais tarde
apenas uma curva indecisa
na noite
7
Mais uma vez
o tempo estilhaça-se
nas minhas mãos
mais uma vez
tu serás o silêncio
à minha volta
8
Esquecer
o rumor de pinheiro
do teu cabelo
e os teus olhos
de pedras negras
Esquecer
estes dias petrificados
longe de ti
9
Eu serei água
água verde
parada
opaca
e estagnada
Eu serei água
onde só tu poderás
reflectir-te
mais nada
Isabel Meyrelles (n. 1929), in Palavras Nocturnas (1954). Escultora por vocação, Isabel Meyrelles foi a figura feminina por excelência do movimento surrealista português. A obra poética, reunida pelas Quasi Edições em 2004, resume-se a 4 livros publicados entre 1951 e 1976, o primeiro dos quais intitulado Em Voz Baixa (1951). Ainda na década de 1950 fixou-se em Paris, não sem antes escandalizar os cafés lisboetas enquanto fumava o seu cachimbo. Adoptando a língua francesa, alguns dos seus poemas foram posteriormente traduzidos para português por Natália Correia. «Embora Isabel Meyrelles não use da escrita automática nem inunde os poemas de livres associações, há sobre a sua poesia uma pele surrealista. Símbolos e figuras, cores. Um certo tipo de humor e um certo tipo de amor. Um certo tipo de desconstrução. / No movimento, de ida e volta contínuo como quem está no mar, para lá de qualquer coisa - das nuvens, do sonho, do espelho -, o poeta entre num mundo que junta sonho e realidade, ou melhor, num mundo em que não faz diferença se está ou não em vigília, ou melhor ainda, num mundo que cria» (Susana Moreira Marques, Público, 30 de Julho de 2005).
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