segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

ALFORRECA FEROZ

Chamemos-lhes plaquettes, folhetos, opúsculos ou simplesmente cadernos, os pequenos formatos em literatura são quase sempre olhados de revés. Existirão variadíssimas razões para que assim seja, muitas delas tão pueris quão mal-intencionadas. No universo da poesia, por exemplo, tais formatos são já uma tradição, não se entendendo por isso os cuidados e os receios tantas vezes aludidos face a tais objectos. Tomemos de exemplo duas publicações relativamente recentes onde os atributos do conteúdo apenas saem ampliados pela escassez de páginas. 


Comecemos por Fera Oculta (Douda Correria, Novembro de 2014), de Vasco Gato (n. 1978), poema dividido em cinco partes com uma componente fortemente emotiva que facilmente se dispersaria caso o poema tivesse sido incluído numa colectânea mais extensa. Publicado isoladamente assume a relevância da sua singularidade no contexto de uma obra com vários focos de interesse desde a estreia com Um mover de mão (Assírio & Alvim, 2000). De resto, já antes o autor tinha optado por formatos similares. Recordemos Lúcifer (Alexandria, 2003) ou 47 (Edição do autor, 2005). Em Fera Oculta a segunda pessoa a que geralmente os seus poemas se dirigem é facilmente identificada pela presença de um terceiro elemento que congrega o emissor e o receptor da mensagem: «Ouço-te nadar sempre nestes meus dias / de náufrago posto em estrela / sobre as águas / e assim estarás tu também / no teu elemento / os dois talvez quietos / e ser ela quem nos encurta aos dois / para o seu ventre alucinado / a mulher que transpôs comigo / o limiar do cinismo / a angústia do salão espelhado / a tua mãe» (s/p, II parte). O tema do pai que se dirige ao filho por nascer não é inédito na poesia portuguesa, embora por vezes a missiva pareça mais um pretexto para esconjurar a situação pessoal daquele que vê chegar a um mundo hostil o fruto de um amor sob ameaça. A última estrofe da IV parte (no livro, a numeração romana saiu traída e onde devia estar um IV está um VI) é especialmente reveladora deste posicionamento do progenitor: «Que se foda a época / digo-te já / que se foda a sépia dos futuros / eu quero aparecer no dia / do teu nascimento / desarmado como uma árvore / sem outra missão que não / amparar-te o susto / e dizer-te baixinho / bem-vindo ao continente dos frágeis / podes parar de nadar». Portanto, o tom do poema distancia-se da sentença moral ou da intenção iniciática que quase sempre contamina este tipo de elocução. Pelo contrário, quem aqui se prepara para nascer é um pai. É na confissão da sua fragilidade que vislumbramos o maior ensinamento. 


Deveras diferente é Canto da Alforreca (Douda Correria, Janeiro de 2016), de José Luís Costa. Afastando-se da realidade palpável, aquele que outrora era Zé Luís Costa dá continuidade a uma deriva pelos territórios do nonsense iniciada com 20 Poemas a Anton Webern seguido de Aventuras (& etc, 2005). Também aqui o pequeno formato se mostra favorável por evitar uma tão previsível quão indesejável saturação do texto num campo hipotético de desenvolvimentos desnecessários. As micronarrativas ou, se preferirem, os pequenos poemas em prosa que compõem este improvável canto recusam ao longo de pouco mais que trinta páginas quaisquer possibilidades de sentido, concentrando esforços numa arquitectura de personalidades (Messias, Tininha, Charadista, Barba Azul, Bogusław Sonik, Xai Lô) envoltas em situações absurdas e anedóticas, na melhor tradição “dadaísta”, ou seja, sem qualquer respeito por um esforço literário vigilante:

UM SONHO EM ALTO MAR

Nós dois num bote, ora dia, ora noite. Amuos alternam com gargalhadas, há sempre o que pescar. Lembro-me de quando foste dar sangue, o braço que ofereceste à agulha, o teu dói-dói que quero cuidar. Sem mudas de roupa, trazes o vestido das anchas flores encarnadas, que torce o pescoço às esferas. De repente, das águas ergue-se Neptuno, vestido de contabilista, tridente à mesma. Exige-nos palavra-passe para prosseguirmos. Sabemos que é «um brinde aos beijos».

Nem sempre estes sonhos nos levam por altos mares, por vezes arrastam-se no comezinho dos salões domésticos, trocam as voltas ao heroísmo com pequenas anomalias (imaginemos um Messias com rinite), mas sempre nos brindam com uma linguagem viva e multicolorida, repleta de vocábulos acrobáticos que transformam o sentido num exigente equilibrista e privilegiam as dimensões onírica e imagética da linguagem. A magia destes textos não está no que pretendem revelar, pois, em boa verdade, talvez eles não pretendam revelar nada. É uma magia anterior às revelações, residente no espaço aberto e livre da imaginação, protegida por enigmas porventura indecifráveis mas muito estimulantes para quem ainda se permita encantar com o flanco mais plástico das palavras:

COMPOSIÇÃO

A professora anuncia: o tema é tremendo e intimida — Deus, quando Tininha tem mais jeito para o desenho. «Um dia vi-O e tinha cara de minúscula mirrada. Enxotei-O para lá da muralha dos brinquedos. No dia seguinte, baixou a bolinha: deixei-o sermos amigos, até a mamã chegar. Prefiro não lhe dar muita confiança. Às vezes poisa no limão, às vezes vai-se». Não escreve bem o que quer. Um eco, ou electricidade estática, força-lhe gralhas no lapso, por lápis.

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