De que falamos quando falamos de poesia política? Falamos seguramente de um chavão alimentado pelo engajamento partidário de alguns autores e dos movimentos a que pertenceram, ou pela submissão da estética à doutrina sectarista, ou ainda pela inclinação para os chamados temas sociais, atentos à actualidade e a formas de perspectivar o momento histórico que fazem da criação artística uma arte do testemunho. Mas a poesia jamais poderá ser reduzida a instrumento ao serviço de um único valor. Enquanto expressão delimitada pela força dos signos, sejam eles linguísticos, de ordem visual ou sonora, a poesia fractura o campo instrumental da linguagem, permitindo que esta se liberte e assuma formas onde a comunicação, e através desta o testemunho, resulta mais do esforço levado a cabo por quem interpreta do que de uma vontade de valorar aspectos circunstanciais da existência humana. Ora, se a política procurar dar valor ao humano a partir de premissas englobantes (os apelos à união são disso a prova mais cabal), a poesia faz exactamente o contrário: desvaloriza o humano a partir da exaltação do indivíduo, das suas dores e das suas frustrações, do seu desespero e da sua comédia, da sua situação precária ante um mundo que o ameaça naquilo que tem de mais seu, a sua singularidade, a sua individualidade, a sua pessoalidade.
Assim sendo, não admira que desde cedo tenham os poetas sido obrigados a viver à margem das repúblicas ideais. Num certo sentido, podemos daqui concluir que o poeta não só não tem república como, ao contrário do que tantas vezes se apregoa, vive muito abaixo da idealização da república denunciando, lá está, as fragilidades e os vícios do ideal. A poesia de Nuno Félix da Costa (n. 1950) coloca-se neste posto de observação das coisas do mundo para, a partir dessas observações, relativizar o próprio papel da poesia e, por consequência, de toda a arte, chamando-nos a atenção para algo nem sempre lembrado como devia: a poesia não salva, a poesia não serve, a poesia liberta-nos de ilusões quanto à possibilidade de mundos perfeitos e paraísos recuperados. Fazendo isso, já faz muito. De um livro como O Desfazer das Coisas e as Coisas já Desfeitas (Companhia das Ilhas, Novembro de 2015), podemos tomar como exemplo este poema:
duas mil quatrocentas e noventa e oito formigas
Acreditamos nas formigas e na sua definição de ordem —
uma alvura lógica
que ainda não atingimos — Transportam ovos para um novo
formigueiro
Cremos terem razões válidas — Nós temos problemas
obstétricos individuais
e não deslocamos ovos de uma democracia para outra embora
nos pertençam
e não a uma rainha-mãe que nos pôs a todos — Dizemo-nos
irmãos e já não nos
matamos — jogamos a juventude contra as muralhas do
casulo — Formigueiros
escuros as bibliotecas onde aprendemos a ler e escrever e
a desviarmo-nos
do carreiro da normalidade — Encontramos um autor —
Cumprimentamo-lo
Esfregamos narizes e prosseguimos com a mesma incerteza
social mau grado
o amor que os poetas nos dedicam — No formigueiro não há
poesia
mas o açúcar venenoso do anonimato — Exército dizimado do
tirano louco
que procura a luz do pirilampo — Que caminhos estranhos
não nos levem
à morte agora que abandonámos a orquestra de irmãos
desmiolados
e felizes como computadores na secção de finanças —
Teremos uma razão
para aniquilar o formigueiro — uma eugenia universal?
O tom geral deste livro, um extenso volume de mais de 200
páginas dividido em dois conjuntos de poemas, pode ser exemplificado a partir
deste poema na página 74. O recurso à figura da formiga oferece-lhe um cunho efabulatório
algo vulgar, mas reforça perante um imaginário cultural colectivo a ideia de
submissão a uma ordem e a um tipo de organização, a uma normalidade comunitária
por oposição à alienação do indivíduo, neste caso o sujeito poético que caminha
à margem da ordem ou, se preferirem, em sentido paralelo ao que a organização
espera de si. Repare-se como ao longo do poema surgem diversos termos evocativos
dessa mesma ordem: rainha-mãe, irmãos, formigueiro, biblioteca, exército,
tirano, orquestra… todos eles por oposição ao «amor que os poetas nos dedicam»,
sendo que nesse amor devemos compreender precisamente o que exclui o ser da
ordem, o que lhe outorga singularidade, o que o liberta da «eugenia universal».
Aniquilar o formigueiro é neste caso como que uma espécie de missão levada ao extremo com uma poesia que não encarrilha, que sai dos eixos e explora uma hipótese de expressão aforística próxima do ensaio, rompendo com qualquer preocupação rítmica ou preconceito estético. A preocupar-se com alguma coisa, Nuno Félix da Costa parece preocupar-se com um compromisso perscrutador da poesia e das suas possibilidades no contexto de uma decadência das utopias, investigando os domínios da palavra poética a partir de uma penetração da consciência que torna visíveis as patologias que podem ameaçá-la. Deste modo, quando se refere a gestos quotidianos banais ou quando, por diversas vezes, enuncia elementos culinários, fá-lo com o propósito de quem observa e investiga uma herança cultural que lhe é inerente — «A culinária é então um modelo cultural» (p. 192) — para daí retirar num tom crítico o sentido da inutilidade e a inutilidade do sentido para a poesia nestes tempos de fachada democrática:
Aniquilar o formigueiro é neste caso como que uma espécie de missão levada ao extremo com uma poesia que não encarrilha, que sai dos eixos e explora uma hipótese de expressão aforística próxima do ensaio, rompendo com qualquer preocupação rítmica ou preconceito estético. A preocupar-se com alguma coisa, Nuno Félix da Costa parece preocupar-se com um compromisso perscrutador da poesia e das suas possibilidades no contexto de uma decadência das utopias, investigando os domínios da palavra poética a partir de uma penetração da consciência que torna visíveis as patologias que podem ameaçá-la. Deste modo, quando se refere a gestos quotidianos banais ou quando, por diversas vezes, enuncia elementos culinários, fá-lo com o propósito de quem observa e investiga uma herança cultural que lhe é inerente — «A culinária é então um modelo cultural» (p. 192) — para daí retirar num tom crítico o sentido da inutilidade e a inutilidade do sentido para a poesia nestes tempos de fachada democrática:
a selva
A poesia aprendeu muito com Disney
No futuro os prémios de poesia incluirão uma visita
guiada
para que os poetas compreendam a utopia que nos reúne
numa praça
de punho erguido e gritando — Como ela andamos à roda —
estontamos
Tombamos e nada sucede — No resto do mundo a felicidade
revolucionária
é uma caricatura num marketing de perfumes e sabonetes e
ideais de pureza
diversos em canções que ninguém já canta — A utopia é o
repouso infantil
do amor que está para vir com as borbulhas e as dores
menstruais
da democracia — Que já não refere a direitos mas a
estados de um sistema
dado a achaques a crises a interrupções que não são
golpes de estado
porque Disney suavizou a biologia das palavras com uma
lógica de
animais felpudos que ora matam ora são felizes para
sempre na selva
onde vivem dando lições de moral darwinista uns aos
outros —
a utopia com a selva naturalizada num poema refrescante
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