o barro crescia da inflexão dos polegares
do oleiro e da leve pressão deles contra
os outros dedos que
amparavam a matéria, fazendo-a
elevar-se em vibração esbelta.
o ar, no interior do barro, era como um pião vertiginoso
em espiral ascendente e o oleiro molhava as mãos
de vez em quando numa escudela. depois
voltava a accionar a roda de baixo com o pé
e retomava o jeito firme das mãos, entre
o afago e a segurança dos seus gestos humedecidos,
e as velozes paredes da vasilha iam ganhando
a forma do cântaro ou da infusa, da bilha ou do
alguidar, por vezes
agilmente decorados, desde o rebordo, por acção
de uma pequena espátula, aplicada contra a rotação
das paredes. eu tinha treze anos.
antónio, o oleiro de freamunde, contava coisas porcas.
tinha comido todas as mulheres e ria de dentes brancos
como se ainda estivesse à dentada nelas. às vezes,
depois de passar as mãos por água, enxugava-as na blusa
que o barro manchava como se pusesse
borrões de entretela crua à vista. e acendia um cigarro,
contemplando o barro húmido crescido das suas mãos
para uma bela utilidade. quando eu tentava aprender,
a roda não girava tão depressa
e o barro desfazia-se desajeitadamente num montículo informe.
lá fora, no terreiro da oficina, as vasilhas secavam ao sol a prumo,
à espera da sua vez no forno. e ele dizia dos vidrados, da maneira
como as cores eram e ficavam, e havia vasos com gerânios de cor viva
e árvores mais atrás, enquanto os velhos
batiam a bisca lambida numa tasca vizinha
e as galinhas e os pintos andavam por ali. não sei se ele ia à feira
vender a produção (decerto ia), nem me interessava então
que houvesse alguém comprando aquelas peças. só que,
postas as mãos no barro, girando a roda, a curvatura certa
lhe saísse dos gestos, como quando
deus tirava da greda a forma humana.
crescia no íntimo da forma a sombra,
coração rotativo a adensar-se,
imponderável e poroso.
ali se guardava o silêncio, ali ressoava
a digna serenidade, crescendo em círculos
sob as mãos do oleiro.
com palavras tentei, artesanal, o que não fiz na roda
da olaria: usá-las, modelá-las, prendê-las
na sua rotação, e guardar nelas vinho, azeite, pão e água,
pô-las ao lume aceso e misturar paladares,
matar a fome e a sede, fazê-las ressumar
da agreste consistência do mundo
com a sua argila imaterial, aquela sua
sonora precariedade.
Vasco Graça Moura (n. 1942 - m. 2014), in Laocoonte, rimas várias, andamentos graves (2005). «Caso típico do poeta de larga informação cultural activa é Vasco Graça Moura (n. 1942-01-03). Desde os seus primeiros livros avulta, além das conhecidas estratégias pós-surrealistas, uma fusão transgressiva de múltiplos códigos comunicativos, que vão das gírias à fraseologia de diversos registos de fala corrente, a inserções de variada terminologia técnico-científica, incluindo distorções paronímicas, etimológicas e morfológicas, junções poliglóticas, etc., produzindo uma larga paleta de humor. Em O Mês de Dezembro e outros poemas, 1977, e nos poemas depois incluídos em Instrumentos para a Melancolia, 1980, a politonalidade humoral restringe-se a favor de uma espécie de neoclassicismo, num campo de paráfrases reinterpretativas ou parodísticas de clássicos (greco-romanas, (pré-)renascentistas ou outros e de idiomas diversos), conjugando toda a vasta combinatória da sintaxe poética hoje admissível com uma difícil disciplina de estruturas ou diapasões antigos, como o soneto, a oitava, a sextina e a elegia, e tópoi, ou motivos, que tanto podem ser helénicos como trecentistas ou seiscentistas, hoelderlinianos como rilkianos, etc. Na assunção de tão informada e explícita intertextualidade há uma larga margem de exercício lúdico e até erudito, mas dela emerge uma cada vez mais sensível e gratificante emoção, ligada a efemérides e experiências actuais» (A. J. Saraiva, Óscar Lopes, in História da Literatura Portuguesa).
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