Não é a primeira vez que a odisseia de Hugh Glass (n.
1783 – m. 1833), explorador, batedor e caçador de origem irlandesa, é objecto
de uma adaptação cinematográfica depois ter sido fixada entre os grandes mitos do
Velho Oeste por inúmeras obras literárias. A primeira ocorreu em 1971, pela mão
do realizador Richard C. Sarafian, com Richard Harris no papel que coube a
Leonardo DiCaprio em The Revenant/O Renascido (2015). Vale a pena rever o trailer de Man in the Wilderness/Um Homem na Solidão para constatar como em múltiplos
aspectos as cenas se repetem, embora no essencial os filmes se
distanciem até pela orientação biográfica que oferecem à sua personagem principal.
Alejandro González Iñárritu opta por um Hugh Glass culturalmente dividido, produto
híbrido de um encontro trágico entre a civilização europeia e a natureza
selvagem dos nativos. Reza a lenda que Glass viveu vários anos com os Pawnee, tribo
do lendário chefe Sharitahrish a quem devemos estas sábias palavras: «O Grande
Espírito fez-nos a todos – fez a minha pele vermelha e a vossa branca; pôs-nos
nesta terra e entendeu que deveríamos viver cada um de forma diferente. Criou
brancos para cultivar a terra e alimentar-se de animais domésticos; mas a nós,
peles vermelhas, criou-nos para deambular através das florestas selvagens e das
planícies; para que nos alimentássemos de animais selvagens e vestíssemos as
suas peles» (in A Alma do Índio, Padrões Culturais Editora). A diferenciação
referida por Sharitahrish diz respeito a modos de vida distintos e
aparentemente inconciliáveis num mundo onde a sedentarização prevaleceu sobre o
nomadismo, colocando-se Glass naquele lugar ambíguo das personalidades históricas
mais fascinantes. Entre a realidade e o mito recai sobre a sua biografia toda
uma reconstrução popular muito típica da historiografia nacional
norte-americana, sendo certo que actuou ao longo da bacia hidrográfica do Rio
Missouri num vasto território algures entre os actuais estados do Montana e
Dakota do Norte e do Sul. Estamos, portanto, numa região fronteiriça a Norte,
caracterizada por uma topografia montanhosa, repleta de florestas e de vales húmidos
cobertos de neve durante grande parte do ano. É impossível assistir ao filme de
Iñárritu sem nos deleitarmos com a fotografia dos cenários naturais escolhidos
para a rodagem, não obstante a paisagem ser um elemento fundamental que não
esgota todas as dimensões de uma obra mais complexa do que possa parecer com um copo de pipocas na mão. As cenas na neve
remetem-nos para filmes como Day of the Outlaw/Homens de Gelo (1959), ou para épicos
de Anthony Mann tais como Bend of the River/Jornada de Heróis (1952) e The Far Country/Terra Distante (1954), mas neste novo filme há entre a paisagem e a
personalidade do protagonista uma espécie de elo inquebrável. Parecem ambos
o prolongamento um do outro, ou, se quisermos, confundem-se ambos no que têm de
enigmático, fronteiriço, belo e selvagem. A opção por um Glass híbrido não é inocente,
enquadrando-se, inclusivamente, na tecelagem que une a obra do realizador
mexicano. The Revenant aproxima-se de um filme como Babel (2006) pela reflexão
que propõe acerca dos muros que separam os povos, das fronteiras que dividem a
humanidade, da própria relação conflituosa que a humanidade mantém com a
natureza de que é parte integrante e não exclusiva. Sequências como as de Hugh
Glass a ser atacado por um urso ou a extirpar um cavalo para se proteger do
frio no interior da carcaça do animal não têm um propósito meramente
sensacionalista, nem sequer impressionam pelo realismo com que a violência é
exposta. Elas têm uma dimensão simbólica que supera os domínios rasteiros da
violência gratuita, tal como sucedia, por exemplo, em Amores perros/Amor Cão
(2000). Já alguém fez notar que a perda do filho mestiço, fruto da relação com
uma índia Pawnee, é uma das componentes mais fortes, em termos narrativos,
deste filme, o qual correria o risco de se transformar em mais uma encenação da
vingança não houvesse nele esse teor místico de entregar às forças unificadoras
e superiores, chamem-se elas Deus ou Natureza, o curso e a razão de um destino.
The Revenant não é, neste sentido, apenas paisagem, é mais um manifesto em
favor de um renascimento colectivo que apela à mestiçagem como factor de
superação das razões étnicas, culturais, sociais, que dividem os povos. Na
personagem de Hugh Glass está contido um desejo acerca da humanidade. Ingénuo
ou não, isso é indiferente. Que função mais nobre podemos esperar de uma obra
artística, desde a tragédia grega aos nossos tempos, do que idealizar o que é
humano fazendo-nos acreditar que por cima da realidade prevalece o sonho e a
utopia?
2 comentários:
Boa noite, Henrique
Eu gostei imenso do filme, aliás como dos outros deste realizador (Alejandro González Iñárritu).
Apenas uma nota sobre Hugh Glass: Nascimento- 1783 Morte- 1833
Um abraço
Lia
:-)
Na realidade, o que aquele 19833 quer dizer é que o homem se mantém vivo nos nossos corações. :-)))
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