Ainda que devamos manter algum distanciamento crítico
relativamente à identidade desse que hoje nos chega sob a designação de Kabir, a
verdade é que as palavras atribuídas a tal figura dispensam quaisquer
preocupações de autoria. Na introdução a O Nome Daquele Que Não Tem Nome
(Assírio & Alvim, Março de 2016), Jorge Sousa Braga não descarta a
possibilidade de Kabir ser um colectivo e salienta o facto, relevante para quem
se preocupe com tais matérias, de não restarem manuscritos dos poemas desta voz
a ecoar desde o séc. XV. O que temos é um conjunto disperso de textos e uma
certa fé nos cuidados prestados à poesia hindu pelo grande Rabindranath Tagore,
a quem devemos a primeira tradução, em 1914, dos poemas de Kabir para uma
língua ocidental. Independentemente da origem das palavras contidas neste
pequeno volume, sobre as quais o poeta Jorge Sousa Braga presta um serviço
impagável de tradutor com as suas versões, o que mais importa é utilizar um
duplo sublinhado para a excelência de muitos destes setenta e três poemas agora
em língua portuguesa.
São diversos os motivos de interesse, podendo o primeiro
considerar-se de suprema pertinência. Vislumbramos aqui uma espécie de
sincretismo que funde numa só instância espiritual os ensinamentos do hinduísmo
e do islamismo, transcendendo o sentimento do divino as paredes do templo e as
da mesquita. Nos textos de cariz iniciático, aquilo que se busca e procura
parece residir no interior do ser. Ou seja, o encontro com o sagrado não se
processa através de uma revelação do mestre ao iniciado, mas antes de uma
entrega deste à meditação, à introspecção e à reflexão como caminho para uma reunião
desejada. A austeridade, a abnegação e a renúncia aos bens materiais típicos do
misticismo hinduísta, mas igualmente de muitas enunciações provenientes dos
mais diversos ramos da religiosidade, não são um método nem uma provação, mas a
natural sabedoria daquele que pela ascese logra caminhar no sentido do sagrado.
Há versos porventura mais esotéricos que induzem as limitações da linguagem enquanto
meio capaz de definir o processo de revelação, tornando-se assim claro
estarmos na presença de uma fé que não se transmite tanto quanto se conquista
em solidão. O propósito não é, portanto, evangelizador, mas sim poético,
supremamente poético, na medida em que supera a hierarquia do mestre e do
discípulo, transcende os muros da revelação, instiga o ouvinte a escutar-se a
si próprio, a voltar-se para dentro de si próprio e a no fundo de si mesmo procurar
a vibração da mais alta voz:
Não sou crente nem ateu
Não vivo segundo os mandamentos
nem segundo o meu coração
Não falo nem oiço
Não sou livre nem escravo
Não tenho afectos nem ódios
Não estou longe nem perto
Não irei nem para o céu
nem para o infenro
Quem quer que me compreenda
que encontre a paz
As palavras de Kabir parecem ressoar um nirvana onde a
vida espiritual resulta do encontro entre o sentimento místico e um certo niilismo.
Isto é, nos seus versos a lógica não leva à verdade, a razão não reflecte o
universo, tudo se funde com tudo sem contudo se perder de si mesmo. Em alguns
poemas, o absurdo dos enunciados varre para um canto muito do surrealismo que V
séculos depois de Kabir procurou a “chave para o universo” na realidade
delirante do sonho. Ora, que diferença haverá entre o delírio do sonho e
o delírio do místico? Em que estados se instala a consciência daquele que sonha
e daquele que atinge o nirvana? Curioso também notar que em muitos poemas o
sujeito poético assume uma identidade feminina, superando assim, além das ramificações
religiosas (hinduísmo versus islamismo), oposições de género, tal como em todos
os poemas o que parece estar em causa é, precisamente, a superação dos opostos
a partir de uma afirmação da vida simples como método para a paz interior, a
suspensão do desassossego e da inquietação daqueles que sem se aperceberem que
vivem estão já mortos e sem se darem conta de que morrem se julgam vivos:
Toda a gente fala
como se soubesse onde fica o paraíso
Mas perguntem-lhes o que
é que há por debaixo da rua onde vivem
e não saberão dizer
Se o paraíso fica naquela direcção
já alguém lá teria chegado
Não será a conversa sobre o paraíso uma treta?
É melhor que te assegures disso
Eu
tudo o que procuro
é uma boa companhia
Sem comentários:
Enviar um comentário