quarta-feira, 23 de março de 2016

O NOME DAQUELE QUE NÃO TEM NOME

Ainda que devamos manter algum distanciamento crítico relativamente à identidade desse que hoje nos chega sob a designação de Kabir, a verdade é que as palavras atribuídas a tal figura dispensam quaisquer preocupações de autoria. Na introdução a O Nome Daquele Que Não Tem Nome (Assírio & Alvim, Março de 2016), Jorge Sousa Braga não descarta a possibilidade de Kabir ser um colectivo e salienta o facto, relevante para quem se preocupe com tais matérias, de não restarem manuscritos dos poemas desta voz a ecoar desde o séc. XV. O que temos é um conjunto disperso de textos e uma certa fé nos cuidados prestados à poesia hindu pelo grande Rabindranath Tagore, a quem devemos a primeira tradução, em 1914, dos poemas de Kabir para uma língua ocidental. Independentemente da origem das palavras contidas neste pequeno volume, sobre as quais o poeta Jorge Sousa Braga presta um serviço impagável de tradutor com as suas versões, o que mais importa é utilizar um duplo sublinhado para a excelência de muitos destes setenta e três poemas agora em língua portuguesa. 
São diversos os motivos de interesse, podendo o primeiro considerar-se de suprema pertinência. Vislumbramos aqui uma espécie de sincretismo que funde numa só instância espiritual os ensinamentos do hinduísmo e do islamismo, transcendendo o sentimento do divino as paredes do templo e as da mesquita. Nos textos de cariz iniciático, aquilo que se busca e procura parece residir no interior do ser. Ou seja, o encontro com o sagrado não se processa através de uma revelação do mestre ao iniciado, mas antes de uma entrega deste à meditação, à introspecção e à reflexão como caminho para uma reunião desejada. A austeridade, a abnegação e a renúncia aos bens materiais típicos do misticismo hinduísta, mas igualmente de muitas enunciações provenientes dos mais diversos ramos da religiosidade, não são um método nem uma provação, mas a natural sabedoria daquele que pela ascese logra caminhar no sentido do sagrado. 
Há versos porventura mais esotéricos que induzem as limitações da linguagem enquanto meio capaz de definir o processo de revelação, tornando-se assim claro estarmos na presença de uma fé que não se transmite tanto quanto se conquista em solidão. O propósito não é, portanto, evangelizador, mas sim poético, supremamente poético, na medida em que supera a hierarquia do mestre e do discípulo, transcende os muros da revelação, instiga o ouvinte a escutar-se a si próprio, a voltar-se para dentro de si próprio e a no fundo de si mesmo procurar a vibração da mais alta voz:

Não sou crente nem ateu
Não vivo segundo os mandamentos
nem segundo o meu coração
Não falo nem oiço
Não sou livre nem escravo
Não tenho afectos nem ódios
Não estou longe nem perto
Não irei nem para o céu
nem para o infenro

Quem quer que me compreenda
que encontre a paz

As palavras de Kabir parecem ressoar um nirvana onde a vida espiritual resulta do encontro entre o sentimento místico e um certo niilismo. Isto é, nos seus versos a lógica não leva à verdade, a razão não reflecte o universo, tudo se funde com tudo sem contudo se perder de si mesmo. Em alguns poemas, o absurdo dos enunciados varre para um canto muito do surrealismo que V séculos depois de Kabir procurou a “chave para o universo” na realidade delirante do sonho. Ora, que diferença haverá entre o delírio do sonho e o delírio do místico? Em que estados se instala a consciência daquele que sonha e daquele que atinge o nirvana? Curioso também notar que em muitos poemas o sujeito poético assume uma identidade feminina, superando assim, além das ramificações religiosas (hinduísmo versus islamismo), oposições de género, tal como em todos os poemas o que parece estar em causa é, precisamente, a superação dos opostos a partir de uma afirmação da vida simples como método para a paz interior, a suspensão do desassossego e da inquietação daqueles que sem se aperceberem que vivem estão já mortos e sem se darem conta de que morrem se julgam vivos:

Toda a gente fala
como se soubesse onde fica o paraíso
Mas perguntem-lhes o que
é que há por debaixo da rua onde vivem
e não saberão dizer

Se o paraíso fica naquela direcção
já alguém lá teria chegado
Não será a conversa sobre o paraíso uma treta?
É melhor que te assegures disso

Eu
tudo o que procuro
é uma boa companhia

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