sexta-feira, 11 de março de 2016

O QUE VEMOS QUANDO LEMOS

Poderíamos substituir a afirmação por uma pergunta: o que esperamos de um livro quando o lemos? Leitores diferentes esperarão efeitos diferentes da leitura de um livro. Nem sempre o saldo corresponderá às expectativas, estando as expectativas quase invariavelmente relacionadas com motivações pessoais subjectivas. Posso esperar de um livro que me informe, que contribua para o desenvolvimento das minhas competências técnicas, posso esperar que me estimule a imaginação, que me ofereça momentos de abstracção ou de entretenimento, que me ajude a reflectir os problemas do mundo, que contribua para o meu autoconhecimento, posso esperar que me emocione ou que me excite. Enfim, podemos esperar inúmeros resultados da leitura de um livro. Mas e se um livro nos oferecer o que menos esperávamos? E se exceder as nossas expectativas, oferecendo-nos, por exemplo, novas pistas de leitura, ou reeducando-nos a leitura, ou transportando-nos para aquele ponto em que sentimos voltar a aprender a ler? É precisamente isso que sucede quando lemos um livro como este O Que Vemos Quando Lemos (Elsinore, Outubro de 2015), de Peter Mendelsund. 
Natural de Cambridge, Massachusetts, o autor estudou filosofia e literatura na Columbia University. Uma carreira atribulada como pianista impeliu-o para o design gráfico, especializando-se na concepção de capas para livros. Tratando-se de um espírito claramente interdisciplinar, o livro acaba por reflectir essa capacidade de analisar uma actividade na interacção por esta estabelecida com inúmeros outros domínios do conhecimento. Apresenta-se como uma fenomenologia da leitura, o que não está mal. Parece-nos, porém, ser esse apenas um chavão que não presta a devida homenagem ao objecto que temos pela frente. Antes de mais, por se tratar de um livro perfeito do ponto de vista gráfico. Objecto lindíssimo, profusamente ilustrado, profusa e pertinentemente ilustrado, estabelecendo não só um equilíbrio constante entre as palavras e as imagens, como sendo capaz de nos convencer que entre umas e outras há apenas a postura de quem interpreta. Quero com isto dizer que muitas das imagens neste livro são puro texto, devem ser lidas, assim como muitas das frases nele contidas, breves, sintéticas e eficazes como os melhores aforismos, apelam a um universo visual e imagístico que nos transforma a leitura numa autêntica experiência visual. Deste modo, o que vemos neste livro é também o que lemos. E o que lemos é, isso mesmo, o que vemos. 
Mendelsund apoia-se em clássicos da literatura universal tais como Anna Karénina, Crime e Castigo, Ulisses, Moby Dick ou As Cidades Invisíveis, entre outros, para explorar os “comos” da leitura e desbravar os territórios que levam da experiência de ler um livro à interpretação das pistas deixadas pelos autores, destas à imaginação, daqui à concepção visual, a partir de elementos dispersos, das personagens, das situações, dos climas e dos ambientes. Como formamos um cheiro na nossa mente através das palavras? Será possível representar um cheiro através de palavras? Qual o rosto do capitão Ahab sugerido por Melville? Terá o autor de Moby Dick fornecido aos seus leitores elementos suficientes para a construção objectiva desse rosto? Terá tido essa preocupação? Kafka recusou qualquer ilustração do ser narrado em A Metamorfose, temendo que a mesma usurpasse ao leitor a oportunidade de imaginar o aspecto do protagonista. E não poderá ser Gregor Samsa cada um dos seus leitores enquanto percorre as páginas de A Metamorfose? A questão é: conseguimos gerar na nossa mente elos de proximidade com uma personagem que nos permitam descrevê-la fisicamente? Haverá entre o leitor e as personagens um distanciamento do mesmo tipo que existe entre as pessoas no seu dia-a-dia? 
Privilegiando-se quase sempre em literatura a descrição comportamental em detrimento da descrição visual, é possível que os nossos ensaios visuais correspondam a estereótipos subjectivos geralmente associados a determinadas acções. Por isso mesmo uma mesma personagem pode assumir diferentes rostos ao longo de uma mesma narrativa. No fundo, ler é como olhar para o mundo. Incapazes de absorver todos os elementos da realidade através da percepção, nós fragmentamos a paisagem. Os panoramas que estabelecemos na nossa mente são construídos a partir da conjugação de diversos fragmentos. Interpretar é como que construir um puzzle com peças provenientes dos “seis” sentidos da percepção. Mendelsund conclui: «Eu diria que é por este motivo que a leitura «funciona»: ler espelha o processo pelo qual nos familiarizamos com o mundo. Não porque as narrativas nos digam necessariamente algo de verdadeiro sobre o mundo (embora possam fazê-lo), mas antes porque a prática de leitura parece-se com, e é como, a própria consciência: imperfeita; parcial; enublada; cocriativa» (p. 403). Basta folhear este livro para perceber que estamos perante um objecto distinto, uma obra exigente e rigorosa, mas ao mesmo tempo desprovida de presunções escusadas, enriquecida pela dimensão lúdica que acrescenta à leitura. Tradução de Rute Mota.

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