Poderíamos substituir a afirmação por uma pergunta: o que
esperamos de um livro quando o lemos? Leitores diferentes esperarão efeitos
diferentes da leitura de um livro. Nem sempre o saldo corresponderá às
expectativas, estando as expectativas quase invariavelmente relacionadas com motivações
pessoais subjectivas. Posso esperar de um livro que me informe, que contribua
para o desenvolvimento das minhas competências técnicas, posso esperar que me
estimule a imaginação, que me ofereça momentos de abstracção ou de
entretenimento, que me ajude a reflectir os problemas do mundo, que contribua para o meu autoconhecimento, posso esperar que me emocione ou que me excite.
Enfim, podemos esperar inúmeros resultados da leitura de um livro. Mas e se um
livro nos oferecer o que menos esperávamos? E se exceder as nossas expectativas,
oferecendo-nos, por exemplo, novas pistas de leitura, ou reeducando-nos a
leitura, ou transportando-nos para aquele ponto em que sentimos voltar a
aprender a ler? É precisamente isso que sucede quando lemos um livro como este
O Que Vemos Quando Lemos (Elsinore, Outubro de 2015), de Peter Mendelsund.
Natural de Cambridge, Massachusetts, o autor estudou filosofia e literatura na
Columbia University. Uma carreira atribulada como pianista impeliu-o para o
design gráfico, especializando-se na concepção de capas para livros. Tratando-se de um
espírito claramente interdisciplinar, o livro acaba por reflectir essa capacidade de analisar uma actividade na interacção por esta
estabelecida com inúmeros outros domínios do conhecimento. Apresenta-se como uma fenomenologia da leitura, o que não está mal. Parece-nos,
porém, ser esse apenas um chavão que não presta a devida homenagem ao objecto
que temos pela frente. Antes de mais, por se tratar de um livro perfeito do
ponto de vista gráfico. Objecto lindíssimo, profusamente ilustrado, profusa e pertinentemente
ilustrado, estabelecendo não só um equilíbrio constante entre as palavras e as
imagens, como sendo capaz de nos convencer que entre umas e outras há apenas a
postura de quem interpreta. Quero com isto dizer que muitas das imagens neste
livro são puro texto, devem ser lidas, assim como muitas das frases nele
contidas, breves, sintéticas e eficazes como os melhores aforismos, apelam a um
universo visual e imagístico que nos transforma a leitura numa autêntica
experiência visual. Deste modo, o que vemos neste livro é também o que lemos. E
o que lemos é, isso mesmo, o que vemos.
Mendelsund apoia-se em clássicos da
literatura universal tais como Anna Karénina, Crime e Castigo, Ulisses, Moby
Dick ou As Cidades Invisíveis, entre outros, para explorar os “comos”
da leitura e desbravar os territórios que levam da experiência de ler um livro
à interpretação das pistas deixadas pelos autores, destas à imaginação, daqui à
concepção visual, a partir de elementos dispersos, das personagens, das
situações, dos climas e dos ambientes. Como formamos um cheiro na nossa mente
através das palavras? Será possível representar um cheiro através de palavras?
Qual o rosto do capitão Ahab sugerido por Melville? Terá o autor de Moby Dick
fornecido aos seus leitores elementos suficientes para a construção objectiva
desse rosto? Terá tido essa preocupação? Kafka recusou qualquer ilustração do
ser narrado em A Metamorfose, temendo que a mesma usurpasse ao leitor a
oportunidade de imaginar o aspecto do protagonista. E não poderá ser Gregor
Samsa cada um dos seus leitores enquanto percorre as páginas de A Metamorfose? A
questão é: conseguimos gerar na nossa mente elos de proximidade com uma
personagem que nos permitam descrevê-la fisicamente? Haverá entre o leitor e as
personagens um distanciamento do mesmo tipo que existe entre as pessoas no seu dia-a-dia?
Privilegiando-se quase sempre em literatura a descrição comportamental em
detrimento da descrição visual, é possível que os nossos ensaios visuais
correspondam a estereótipos subjectivos geralmente associados a determinadas
acções. Por isso mesmo uma mesma personagem pode assumir diferentes rostos ao
longo de uma mesma narrativa. No fundo, ler é como olhar para o mundo.
Incapazes de absorver todos os elementos da realidade através da percepção, nós
fragmentamos a paisagem. Os panoramas que estabelecemos na nossa mente são
construídos a partir da conjugação de diversos fragmentos. Interpretar é como
que construir um puzzle com peças provenientes dos “seis” sentidos da percepção.
Mendelsund conclui: «Eu diria que é por este motivo que a leitura «funciona»:
ler espelha o processo pelo qual nos familiarizamos com o mundo. Não porque as
narrativas nos digam necessariamente algo de verdadeiro sobre o mundo (embora
possam fazê-lo), mas antes porque a prática de leitura parece-se com, e é como,
a própria consciência: imperfeita; parcial; enublada; cocriativa» (p. 403). Basta
folhear este livro para perceber que estamos perante um objecto distinto, uma
obra exigente e rigorosa, mas ao mesmo tempo desprovida de presunções
escusadas, enriquecida pela dimensão lúdica que acrescenta à leitura. Tradução de Rute Mota.
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