Como passar incólume à hipocrisia geral sem recorrer a um
pouco de cinismo? O mestre andava com a lanterna ateada de dia para vislumbrar
um homem honesto, mas hoje não lhe bastaria luz sobre luz. Nem com microscópio ele
conseguiria ver para lá de um espelho estilhaçado o verdadeiro rosto desta bela
fachada com que disfarçamos casas próprias completamente desarrumadas.
Ocorre-me
o nome de António Lobo de Carvalho, sátiro incisivo com tendência para a
pornografia descarada. Morreu a 26 de Outubro de 1787, mas ninguém sabe quando
nasceu. No exemplar dos 40 e tal sonetos que adquiri em tempos num alfarrabista
vêm três recortes, reunidos por ligações que apenas o ou os
proprietários antigos terão sabido conjugar: um artigo de Raul Rego sobre
Francisco Rodrigues Lobo, um outro com referência a poema de Tomás António
Gonzaga e um pequeníssimo recorte com referência a esta edição da &etc (então
ao preço de 100$00). De lado, manuscrito, o nome de Fernando Assis Pacheco, que
sobre este tal “Lobo da Madragoa” profere algumas probabilidades: terá nascido
em Guimarães, terá cursado Direito, «vivente às sopas dos mais favorecidos e de
certeza certa um fescenino» (diz-se dos versos ou cantigas livres, obscenas,
que se cantavam nas bodas, na antiga Roma).
Estamos, portanto, no campo da
licenciosidade. Mas não só. Desenganem-se as almas perversas que julguem estes
versos pela superfície, pois há neles uma profundidade estética e até metafísica que convém não
descurar. Desde logo, vislumbramos no estro um apurado olhar de cronista. Lobo
de Carvalho corre o país de Guimarães a Beja, não deixando de retratar a
capital com acutilante perspicácia:
Frutos do desengano, colhidos na convivência das putas, e
patenteados ao mundo no seguinte
Putedo de Lisboa, ó gente fraca,
Convosco falo, cagaçais malditos,
Convosco, a quem caralhos infinitos
Têm batido no cu, sem ser matraca:
Vós, que fazeis meiguices qual macaca,
Que suspira uma vez, outra dá gritos;
Vós que fazeis morrer bolsas, e espíritos,
Sem que para isso useis punhal, ou faca:
A todas sem excepção conjuro, atesto,
O ter-lhes hoje avante ódio fatal,
Pois carícias fingidas já detesto:
Acreditem os homens em geral,
Que à risca seguirei quanto protesto,
Pois com putas não gasto já real.
O perigo destes versos é poder o entusiasmo erótico toldar a hermenêutica,
levando o leitor a interpretações literais onde em cada palavra existe uma metáfora
e no poema completo uma alegoria da promiscuidade que ainda hoje caracteriza a
capital do império. Entre hipócritas e fingidos, a putaria aludida mais não é do que os bíblicos vendilhões do templo, uma corte de séquitos dispostos a tudo e mais
alguma coisa pela mísera tença. Assim como neste poema vislumbramos os farrapos
da moral no poder, veja-se como neste outro soneto assalta nas entrelinhas uma crua
figuração das assimetrias sociais:
À boa e descansada vida que levam os nossos frades-pios,
digna de inveja por todas as considerações
Desde que nasce o sol até que é posto
Governa o lavrador o curvo arado,
E de anos o soldado carregado
Peleja, quer por força, quer por gosto:
Cristalino suor alaga o rosto
Do barqueiro, do remo calejado;
Do cascável ao dente envenenado
Anda o rude algodista sempre exposto:
Trabalha o pobre desde a tenra idade;
O destro pescador lanços sacode
Para escapar da fome à atrocidade;
Todos trabalham, pois que ninguém pode
Comer sem trabalhar; somente o frade
Come, bebe, descansa e depois fode.
Estamos perante a raiz mais vigorosa do neo-realismo,
do poema social que manifesta num tom de lamentação e exaltação heróica os
esforços da classe trabalhadora, ao mesmo tempo que denúncia o laxismo hipócrita,
porque pecador e indolente, do clero. Em certo sentido, podemos dizer que António
Lobo de Carvalho foi entre os nossos um dos mais heterodoxos poetas. Não admira
o silêncio sobre ele pesado, assim como a vala comum para a qual foram varridos
alguns dos seus mais perfeitos poemas de um ponto de vista meramente técnico
ou, se preferirem, formal.
Atente-se o leitor como em diversos poemas a velhice
é convocada com rimas fogosas e originais, de que é perfeito exemplo essa de pôr a dialogar espantalho
com caralho numa clara alusão aos terrores da degenerescência física. Nem
Herberto logrou tais efeitos nos seus versos finais, entre os quais incluímos já
os póstumos:
A certa moça, chamando velho ao autor, que ainda se não
tinha por tal
Não te escondo a guedelha encanecida,
Nem da rugosa fronte a cor já baça;
Conheço que o meu lustre, a minha graça
Foi por duros Janeiros destruída:
Confesso, ainda que é já bem conhecida,
Que a idade minha dos cinquenta passa;
Mas juro que ainda tenho grossa maça,
Qual teso mastaréu a pino erguida:
Se és hidrópica mestra fodedora,
Daquelas que procuram com trabalho
Lanzuda porra, porra aterradora:
Minhas cãs não te sirvam de espantalho;
Põe à prova o teu cono, e sem demora
Verás então se é velho o meu caralho.
E por fim este edificante poema, com o qual por ora me
despeço na esperança de que possa o leitor reavivar a potência do vate em
muitas e moralizadoras cadeias de distribuição de poesia avulso:
Exortação moral, em que o autor persuade aos putanheiros a
evitar os perigos a que andam expostos, e que vão descritos neste
A baixa prole da ralé nojenta,
Envolta em restos de cetim barato,
Armada a vã cabeça de aparato,
Sobre aberta janela se apresenta:
A escada trepa a velha rabugenta,
A quem falta o tacão já no sapato;
Batendo à porta do lascivo trato
Um pinto mais à pobre casa aumenta:
O lucro gira sempre confundido
Pelas mãos dos adelos desbastado,
E do destro garoto apercebido:
Fuja das moças todo o homem honrado,
Que além do gimbo e crédito perdido,
Não quer de vivo azougue ser minado.
2 comentários:
ahahahha gosto do Lobo
Um Lobo que era um verdadeiro Leão!
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