quinta-feira, 7 de abril de 2016

LOBO DA MADRAGOA


   Como passar incólume à hipocrisia geral sem recorrer a um pouco de cinismo? O mestre andava com a lanterna ateada de dia para vislumbrar um homem honesto, mas hoje não lhe bastaria luz sobre luz. Nem com microscópio ele conseguiria ver para lá de um espelho estilhaçado o verdadeiro rosto desta bela fachada com que disfarçamos casas próprias completamente desarrumadas. 
   Ocorre-me o nome de António Lobo de Carvalho, sátiro incisivo com tendência para a pornografia descarada. Morreu a 26 de Outubro de 1787, mas ninguém sabe quando nasceu. No exemplar dos 40 e tal sonetos que adquiri em tempos num alfarrabista vêm três recortes, reunidos por ligações que apenas o ou os proprietários antigos terão sabido conjugar: um artigo de Raul Rego sobre Francisco Rodrigues Lobo, um outro com referência a poema de Tomás António Gonzaga e um pequeníssimo recorte com referência a esta edição da &etc (então ao preço de 100$00). De lado, manuscrito, o nome de Fernando Assis Pacheco, que sobre este tal “Lobo da Madragoa” profere algumas probabilidades: terá nascido em Guimarães, terá cursado Direito, «vivente às sopas dos mais favorecidos e de certeza certa um fescenino» (diz-se dos versos ou cantigas livres, obscenas, que se cantavam nas bodas, na antiga Roma). 
   Estamos, portanto, no campo da licenciosidade. Mas não só. Desenganem-se as almas perversas que julguem estes versos pela superfície, pois há neles uma profundidade estética e até metafísica que convém não descurar. Desde logo, vislumbramos no estro um apurado olhar de cronista. Lobo de Carvalho corre o país de Guimarães a Beja, não deixando de retratar a capital com acutilante perspicácia:

Frutos do desengano, colhidos na convivência das putas, e patenteados ao mundo no seguinte

Putedo de Lisboa, ó gente fraca,
Convosco falo, cagaçais malditos,
Convosco, a quem caralhos infinitos
Têm batido no cu, sem ser matraca:

Vós, que fazeis meiguices qual macaca,
Que suspira uma vez, outra dá gritos;
Vós que fazeis morrer bolsas, e espíritos,
Sem que para isso useis punhal, ou faca:

A todas sem excepção conjuro, atesto,
O ter-lhes hoje avante ódio fatal,
Pois carícias fingidas já detesto:

Acreditem os homens em geral,
Que à risca seguirei quanto protesto,
Pois com putas não gasto já real.

   O perigo destes versos é poder o entusiasmo erótico toldar a hermenêutica, levando o leitor a interpretações literais onde em cada palavra existe uma metáfora e no poema completo uma alegoria da promiscuidade que ainda hoje caracteriza a capital do império. Entre hipócritas e fingidos, a putaria aludida mais não é do que os bíblicos vendilhões do templo, uma corte de séquitos dispostos a tudo e mais alguma coisa pela mísera tença. Assim como neste poema vislumbramos os farrapos da moral no poder, veja-se como neste outro soneto assalta nas entrelinhas uma crua figuração das assimetrias sociais:

À boa e descansada vida que levam os nossos frades-pios, digna de inveja por todas as considerações

Desde que nasce o sol até que é posto
Governa o lavrador o curvo arado,
E de anos o soldado carregado
Peleja, quer por força, quer por gosto:

Cristalino suor alaga o rosto
Do barqueiro, do remo calejado;
Do cascável ao dente envenenado
Anda o rude algodista sempre exposto:

Trabalha o pobre desde a tenra idade;
O destro pescador lanços sacode
Para escapar da fome à atrocidade;

Todos trabalham, pois que ninguém pode
Comer sem trabalhar; somente o frade
Come, bebe, descansa e depois fode.

   Estamos perante a raiz mais vigorosa do neo-realismo, do poema social que manifesta num tom de lamentação e exaltação heróica os esforços da classe trabalhadora, ao mesmo tempo que denúncia o laxismo hipócrita, porque pecador e indolente, do clero. Em certo sentido, podemos dizer que António Lobo de Carvalho foi entre os nossos um dos mais heterodoxos poetas. Não admira o silêncio sobre ele pesado, assim como a vala comum para a qual foram varridos alguns dos seus mais perfeitos poemas de um ponto de vista meramente técnico ou, se preferirem, formal. 
   Atente-se o leitor como em diversos poemas a velhice é convocada com rimas fogosas e originais, de que é perfeito exemplo essa de pôr a dialogar  espantalho com caralho numa clara alusão aos terrores da degenerescência física. Nem Herberto logrou tais efeitos nos seus versos finais, entre os quais incluímos já os póstumos:

A certa moça, chamando velho ao autor, que ainda se não tinha por tal

Não te escondo a guedelha encanecida,
Nem da rugosa fronte a cor já baça;
Conheço que o meu lustre, a minha graça
Foi por duros Janeiros destruída:

Confesso, ainda que é já bem conhecida,
Que a idade minha dos cinquenta passa;
Mas juro que ainda tenho grossa maça,
Qual teso mastaréu a pino erguida:

Se és hidrópica mestra fodedora,
Daquelas que procuram com trabalho
Lanzuda porra, porra aterradora:

Minhas cãs não te sirvam de espantalho;
Põe à prova o teu cono, e sem demora
Verás então se é velho o meu caralho.


   E por fim este edificante poema, com o qual por ora me despeço na esperança de que possa o leitor reavivar a potência do vate em muitas e moralizadoras cadeias de distribuição de poesia avulso:

Exortação moral, em que o autor persuade aos putanheiros a evitar os perigos a que andam expostos, e que vão descritos neste

A baixa prole da ralé nojenta,
Envolta em restos de cetim barato,
Armada a vã cabeça de aparato,
Sobre aberta janela se apresenta:

A escada trepa a velha rabugenta,
A quem falta o tacão já no sapato;
Batendo à porta do lascivo trato
Um pinto mais à pobre casa aumenta:

O lucro gira sempre confundido
Pelas mãos dos adelos desbastado,
E do destro garoto apercebido:

Fuja das moças todo o homem honrado,
Que além do gimbo e crédito perdido,
Não quer de vivo azougue ser minado.

2 comentários:

MJLF disse...

ahahahha gosto do Lobo

hmbf disse...

Um Lobo que era um verdadeiro Leão!