sábado, 16 de abril de 2016

MAR VIVO


A Jorge Amado

Sou de todos os mares, de todos os profundos oceanos do mundo.
Sou de todos os portos, do barulho das suas docas,
de todos os enormes navios fundeados nos cais
e dos que estão encalhados nos bancos de areia
e daqueles que repousam nos areais dourados
do fundo, sangrento de corais, dos oceanos.
Sou de todas as grandes rotas de navegação
que abrem rasgões de brancura à flor das águas verdes
e que são os caminhos que levam os homens do mar
para lá e para cá, nos seus destinos de nascerem e morrerem nas águas.
Sou de todos os faróis que há nas noites das costas
indicando, nos segundos cronometrados da sua luz,
a traição dos continentes, das ilhas e dos bancos de areia,
desses faróis que são como foguetes de poeira de luz
e tão breves como os gloriosos sonhos dos homens...
Sou de todos os pequenos barcos que partem com confiança,
tão frágeis como mãos de meninos e esperanças de adultos,
para expedições puramente aventurosas e românticas,
com saudades de terra e uma esperança infinita
pintada nas proas audazes e firmes...
Sou de toda a extraordinária força da gente marítima
que se entrega aos abismos do mar com a sinceridade
de quem se dá ao único destino possível da terra
e que geme há séculos o poder dessa tentação irresistível
que os empurra e os faz rolar por cima das ondas.
Sou de todos os voos de gaivotas e das suas travessias
quase incompreensíveis aos homens da terra tão lentos
e tão distantes do entendimento das asas duma gaivota.
Sou de todas as nuvens do mar que mergulham nas águas
e lhe dão a cor da sua cor na mais absoluta e total das posses.

Ah! como eu sou de todas as tempestades e de todas as tragédias do mar!

Esta identidade é sincera e não foi arranjada
para compor com originalidade este poema
que nem sei se algum dia será lido.
Vem-me ansiosamente à flor da alma,
tão deplorável e fatalmente perdida
em todas estas mil e uma coisas que cheiram
tão terrivelmente a terra calcinada e pobre.
Sim, o meu grande destino — era o mar:
ir com os pescadores à terra nova
lutar com as tempestades e com as brumas do norte,
conhecer todas as enseadas, todas as baías, todos os portos,
e tratar todos os mares como velhos camaradas do café.
Usar uma camisola aos quadrados pretos e brancos,
um grande chapéu de oleado e uma fala arrastada e lenta
como o marulho das águas quebradas nos diques,
e, nos intervalos das viagens,
embebedar-me nas tabernas dos portos
cantando as velhas canções marítimas.
Há lá nada mais belo do que ser marinheiro!
E então ser o homem do leme?
Isto de abrir uma rota com as curvas que apetecer,
criar os desvios que a imaginação for inventando,
sentir profundamente as distâncias vencidas com a ajuda dos ventos,
traçar os próprios caminhos sem os limites impostos
pelas fronteiras e pelos guardas das fronteiras
e pelos direitos internacionais dos códigos e das teorias!
Que coisa tão bela para quem encontra na terra
sempre os caminhos abertos — mas só esses —
com os letreiros escritos só numa língua
e que indicam todos a mesma eterna cidade
com o seu meridiano estabelecido e irrevogável!
Há lá nada mais belo do que ser marinheiro!
Contar aos filhos as peripécias das viagens de anos,
dizer-lhes as claridades desses luares atlânticos
insuflando-se na água e iluminando os mundos
dos peixes, dos corais, das sereias e os palácios
dos milionários reis dos oceanos,
as histórias das suas dinastias e as tragédias
das suas eternas lutas com a flor das águas!
Evocar-se a sinfonia dos naufrágios
e as últimas palavras dos mortos,
e os seus corpos inchados cobertos de algas cor de garrafa
entregues a todo o delírio animal
dos milhares de peixes de escamas prateadas.
Há lá nada mais belo do que ser marinheiro!

Por isso a minha pátria é o mar
e tudo o que ficou dito neste poema, 
e tudo o que não sei dizer mas que me canta no sangue
e me impele cada vez mais para junto do cais,
como o vento arrasta os barcos para o largo
entoando nas suas velas triangulares
o mundo da sua milenária ânsia de espaço.


João Menéres de Campos (n. 1912 - m. 1988), in Mar Vivo (1939). Nasceu no Rio de Janeiro, onde o pai exercia actividade comercial. Mudou-se para Vila Real com apenas um ano, aí se fixando para o resto da vida. Estudou Direito em Coimbra e Lisboa, colaborando com a Presença nos últimos números da primeira série (ano de 1938). 

1 comentário:

Anónimo disse...

Em Vila Real, não foi exactamente para o resto da vida, embora tenha sempre mantido uma relação física com a cidade. Mas viveu, trabalhou e morreu no Porto.