No dia do jogo acordei a fazer-me uma pergunta: por que
razão gosto de futebol? Por que me enervo? Por que fico ansioso? Não encontrei explicação, há inclinações que não se
explicam. Estou sempre a dizer que vou deixar de ligar à bola, mas depois a
bola cativa-me as atenções, torna-me recluso de emoções inexplicáveis,
porventura comparáveis às que sentem as pessoas de fé. Já chorei pelo meu
clube, o Sporting, o emblema que trago no coração ensinou-me a sofrer. No
passado Domingo voltei a chorar, mas desta feita agarrado a uma bandeira nacional e
entre familiares. Queria ver o jogo na companhia do meu pai, o que só foi
possível durante os terríveis 45 minutos da primeira parte. Ao intervalo, logo
ao intervalo, disse que o Fernando Santos teria de mostrar coragem. Precisava
de substituir o jovem Renato por alguém que servisse de referência na frente. Com um único
ponta de lança no banco, o mais mal-amado de sempre, era quase um suicídio o
que se pedia ao treinador. Foi o que ele fez, esperando quase pelo fim do tempo
regulamentar. Resultou, a dez minutos do final do prolongamento. Éder festejou
com uma luva branca na mão, uma chapada nas adversidades, nos incrédulos, na
chacota que o atingiu vinda de todos os lados. À excepção dele próprio e de
mais meia dúzia, ninguém dos tais onze milhões acreditava nele. Foi quanto
bastou. Não lhe chamem agora herói improvável, improvável foi tudo quanto
aconteceu e continua a acontecer. O futebol tem disto, leva tipos como eu,
convencidos de que a previsibilidade manda no mundo, a delirarem com o
imprevisível. Deve ser por isso que gosto de futebol, porque o jogo contraria-me,
mostra-me que nem tudo está nas mãos do desalento.
A excitação colectiva não me inquieta, sou incapaz de
desprezá-la. Quantas vezes somos felizes na nossa vida? Este é um momento raro,
faz sentido que a alegria dos festejos esteja ao nível da raridade do
acontecimento. As pessoas que passam indiferentes a tudo isto, mantendo um ar
sério, desprezando ou menorizando o feito, dizendo que não sentem nada, são pessoas muito sóbrias. Porventura invejáveis, porventura distantes. Tal
seriedade atemoriza-me. Tenho medo das pessoas sérias e sóbrias. Se em tempos
escrevi num poema que “as pessoas saudáveis são todas desinteressantes” foi
também por razões como estas. Talvez as suas paixões sejam canalizadas para
outros feitos, talvez prefiram expressar o êxtase com que por certo vivenciam
alguns momentos adiando euforias. Não estranhem, porém, a euforia dos outros,
de uma maioria para quem talvez um jogo de bola não se resuma apenas a um jogo
de bola. Repare-se na composição desta selecção nacional de futebol profissional,
com rapazes provenientes de praticamente toda a Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa. Daí que este triunfo seja também uma ponte a ligar-nos, uma
ponte entre Portugal e Cabo Verde (onde nasceu Nani), Guiné-Bissau (onde
nasceram Éder e Danilo), Angola (onde nasceu William Carvalho), Brasil (onde
nasceu Pepe). E havia as ilhas, Angra do Heroísmo, de Eliseu, e a Madeira, de
Ronaldo. E havia os emigrantes, os filhos de emigrantes a jogarem pela selecção,
três nascidos em França (Anthony Lopes, Raphaël Guerreiro, Adrien), um na
Alemanha (de seu nome Cédric). Portanto, a excitação colectiva é a de uma
comunidade por uma vez unida e bem representada num objectivo comum. Que
tivesse sido o futebol, que importa? Aproveite-se essa aproximação para que outros
laços se fortaleçam numa Europa acossada pelo racismo, pela xenofobia, por
muros desumanos e de desrespeito pela diferença. Eu gosto de ver Timor a sorrir, nem que seja por nós. Ou pelo que de nós há neles e pelo que deles há em nós.
Mas esta é também a lição da resiliência. Dois exemplos e
uma imagem. Há na selecção portuguesa um central chamado José Fonte. Quem
conheça a história não poderá senão ficar feliz pelo homem. Em 2004, quando
Portugal foi o país organizador do Euro, Fonte «andava a fazer estágios com
outros jogadores desempregados do Sindicato de Jogadores». Andou pelos clubes
secundários de Inglaterra a partir pedra, até que chegou a sua hora. Merece
mais do que ninguém erguer a Taça das traças. O segundo caso é por demais conhecido.
Éder é em si mesmo um poema épico. Se viram as imagens da avó guineense cheia
de orgulho do seu Éderzito, saberão do que estou a falar. Veio para Portugal
com 3 anos, foi acolhido pelo Lar Girassol, nunca frequentou as academias dos
grandes clubes, andou por equipas anãs, chegou à briosa, foi fazendo pela vida
ouvindo cobras e lagartos da falta de jeito que o levava a tropeçar em si
próprio. Bendita mental coach que lhe enfiou a luva branca nas canelas. Eu comi
com ela nas trombas, de tantas vezes que o critiquei. E apesar de ter previsto o
desfecho e de durante o jogo ter rezado para que o tipo entrasse (não tínhamos
outro para a posição), bem que mereço a chapada. Éder não é agora o melhor
avançado do mundo, mas Éder é para todos uma lição. Por fim, a imagem, a tal
imagem do central luso-brasileiro, de seu nome Pepe, a vomitar no final do
jogo. Estava a ver aquela imagem e a lembrar-me de quantos portugueses não
disseram sobre Pepe que ele não sentia a selecção porque não era português. Ele
há ironias do caneco, esse mesmo caneco, o que trouxemos para casa e é nosso, o
das traças, o que teve no esforço titânico de Pepe um símbolo perfeito para a
história desta conquista.
Mas qual conquista, questionarão os críticos? O mundo
está cheio de críticos, devemos dar-lhes graças. Eles são a praga que nos
obriga a descobrir e desenvolver novos praguicidas. As duas forças opor-se-ão
eternamente, a dos que fazem e querem fazer contra a dos que tudo o que fazem é
comentar quem faz e quer fazer. Tudo o que fazem é deveras importante e inspirador,
estamos-lhes gratos. Por certo, foram as críticas que em tempos idos levaram
Scolari a ceder à pressão: mete os do Porto. Da mesma forma, terão sido os
críticos que abriram a consciência de Fernando Santos e o fizeram encontrar
maneira de jogar com o meio campo do Sporting mais Renato. Só a partir daí é
que a selecção encontrou algum rumo. Há uma palavra para isto, é a palavra
entrosamento. Correu bem, temos os críticos para tecerem loas. Corresse mal,
teríamos os críticos para deitar a baixo. Também está certo. Mas entre todos os
críticos, há sempre um que mais se destaca. Ronaldo disse sobre a Islândia o
mesmo que meio mundo disse a nosso respeito, demasiado defensivos, cínicos,
nojentos, o diabo a sete. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Quem olhe com
atenção para o golo derradeiro fica com uma ideia do que nós fomos, uns chatos,
uns empata fodas, fomos como as traças, fomos, de facto, uns campeões. Moutinho
ganha a bola entre dois galos capões com o dobro do seu tamanho, parecia que
estava a jogar ao meio, não desistiu, meteu o pé, ganhou a bola; mete para William
Carvalho e este fez o que melhor sabe, ao segundo toque meteu curto para Quaresma, o cigano, e
deixou os galos a cantarem sozinhos; Quaresma, pressionado, volta a meter de
primeira para Moutinho, parecia a dança do vira; Moutinho descobre Éder ali ao
lado e passa-lhe a bola; ombro a ombro com um defesa francês, Éder consegue
ganhar posição e fazer o remate, depois de ter olhado para a direita e de ter
descoberto o melhor vazio das nossas vidas. A selecção foi muito isto durante
todo o torneio, isto que não é bonito nem feio, isto que é como a água mole em
pedra dura. Tanto bate até que fura.
Agora não me chateiem, o furo está feito e eu quero beber
desta água. Ah, que tristeza este povo que é só futebol e Fátima e fado. Deixa
ser. E vocês, ó fadistas hipócritas das redes sociais, da burguesia instalada, dos remoinhos de vento, das bocas, sempre a dizerem mal de
tudo e sem um punho para levantar quando é preciso dar o peito às balas.
Manifestações há muitas, ó palerma. Tantas quantos os chapéus. Esta é de
alegria, não esperem que para revoltas tenham a mesma adesão, pois o povo nunca foi nem nunca será de se dar às revoltas como é de se dar ao riso. Compreendam que em parcos 80 anos de vida (médias optimistas), rir é bem mais proveitoso do que qualquer outra coisa. Sejam, pois, dignos discípulos de Epicuro. Ou então revoltem-se contra o São João. Acabem
já com o Santo António em Lisboa. Sugiram um referendo para que de hoje em diante só seja permitido sair à rua se for para greves e manifestações por coisas tão prementes como os direitos dos trabalhadores, um
lugar na Goldman Sucks (sic), um vestido comprido para a Ágata, a colecção Miró, o NOS Alive etc & tal. Afinal, para que fomos todos à rua
nos últimos quatro anos senão para dizermos que queríamos ser felizes? E agora, agora que temos essa possibilidade, nem que seja de bolsos vazios, vamos negar-nos a tamanha alegria? Não me fodam. É só um dia, é só uma semana, temos tempo
para voltar a cair na real, a real pasmaceira imposta pelos gatunos que nos
governam. Deixem pois que o circo e o pão invada as ruas nem que seja por estes
breves instantes de alegria, que eu gosto tanto de ver alegria nos rostos das
pessoas, de vê-las iludidas enquanto a morte não chega para fazer das suas. E
reparo com gozo na proliferação de notícias sobre conquistas desportivas, um
arrastão de títulos, alguns deles com mais de cinco anos, a invadirem murais
como se de repente fôssemos os melhores da pesca desportiva ao tiro ao arco,
passando pela columbofilia e arredores. É bom pensarmos que somos os melhores,
nem que seja nisto de não darmos conta em tempo real do quão bons temos sido ao longo dos anos em
inúmeras coisas.
2 comentários:
Belo texto :) bjs
Obrigado pelo texto.
Sabes, tenho muita pena de quem fica tão enervado com a alegria do futebol. Ou daqueles que, percebendo, festejam mas depois ficam tentando se conter. "Já chega". Isto é um grande feito. Uma delícia, uma maravilha. Merece ser festejado. Tantas desilusões que se sofria tanto. O Euro 2004 é o exemplo acabado de um enorme sofrimento coletivo, um disparate sem tamanho. Esta vitória contra a França, uma final que teria sido perdida em outros tempos, só com a lesão do Ronaldo, é redentora.
Tudo o que escreveste é maravilhoso. O Éder, o Fonte (não conhecia a história) e a fénix renascida das cinzas - Ronaldo de jogador retirado de campo, ferido, a grande motivador na linha, junto com todos.
Enviar um comentário