quinta-feira, 14 de julho de 2016

A TAÇA DAS TRAÇAS



No dia do jogo acordei a fazer-me uma pergunta: por que razão gosto de futebol? Por que me enervo? Por que fico ansioso? Não encontrei explicação, há inclinações que não se explicam. Estou sempre a dizer que vou deixar de ligar à bola, mas depois a bola cativa-me as atenções, torna-me recluso de emoções inexplicáveis, porventura comparáveis às que sentem as pessoas de fé. Já chorei pelo meu clube, o Sporting, o emblema que trago no coração ensinou-me a sofrer. No passado Domingo voltei a chorar, mas desta feita agarrado a uma bandeira nacional e entre familiares. Queria ver o jogo na companhia do meu pai, o que só foi possível durante os terríveis 45 minutos da primeira parte. Ao intervalo, logo ao intervalo, disse que o Fernando Santos teria de mostrar coragem. Precisava de substituir o jovem Renato por alguém que servisse de referência na frente. Com um único ponta de lança no banco, o mais mal-amado de sempre, era quase um suicídio o que se pedia ao treinador. Foi o que ele fez, esperando quase pelo fim do tempo regulamentar. Resultou, a dez minutos do final do prolongamento. Éder festejou com uma luva branca na mão, uma chapada nas adversidades, nos incrédulos, na chacota que o atingiu vinda de todos os lados. À excepção dele próprio e de mais meia dúzia, ninguém dos tais onze milhões acreditava nele. Foi quanto bastou. Não lhe chamem agora herói improvável, improvável foi tudo quanto aconteceu e continua a acontecer. O futebol tem disto, leva tipos como eu, convencidos de que a previsibilidade manda no mundo, a delirarem com o imprevisível. Deve ser por isso que gosto de futebol, porque o jogo contraria-me, mostra-me que nem tudo está nas mãos do desalento.

A excitação colectiva não me inquieta, sou incapaz de desprezá-la. Quantas vezes somos felizes na nossa vida? Este é um momento raro, faz sentido que a alegria dos festejos esteja ao nível da raridade do acontecimento. As pessoas que passam indiferentes a tudo isto, mantendo um ar sério, desprezando ou menorizando o feito, dizendo que não sentem nada, são pessoas muito sóbrias. Porventura invejáveis, porventura distantes. Tal seriedade atemoriza-me. Tenho medo das pessoas sérias e sóbrias. Se em tempos escrevi num poema que “as pessoas saudáveis são todas desinteressantes” foi também por razões como estas. Talvez as suas paixões sejam canalizadas para outros feitos, talvez prefiram expressar o êxtase com que por certo vivenciam alguns momentos adiando euforias. Não estranhem, porém, a euforia dos outros, de uma maioria para quem talvez um jogo de bola não se resuma apenas a um jogo de bola. Repare-se na composição desta selecção nacional de futebol profissional, com rapazes provenientes de praticamente toda a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Daí que este triunfo seja também uma ponte a ligar-nos, uma ponte entre Portugal e Cabo Verde (onde nasceu Nani), Guiné-Bissau (onde nasceram Éder e Danilo), Angola (onde nasceu William Carvalho), Brasil (onde nasceu Pepe). E havia as ilhas, Angra do Heroísmo, de Eliseu, e a Madeira, de Ronaldo. E havia os emigrantes, os filhos de emigrantes a jogarem pela selecção, três nascidos em França (Anthony Lopes, Raphaël Guerreiro, Adrien), um na Alemanha (de seu nome Cédric). Portanto, a excitação colectiva é a de uma comunidade por uma vez unida e bem representada num objectivo comum. Que tivesse sido o futebol, que importa? Aproveite-se essa aproximação para que outros laços se fortaleçam numa Europa acossada pelo racismo, pela xenofobia, por muros desumanos e de desrespeito pela diferença. Eu gosto de ver Timor a sorrir, nem que seja por nós. Ou pelo que de nós há neles e pelo que deles há em nós. 

Mas esta é também a lição da resiliência. Dois exemplos e uma imagem. Há na selecção portuguesa um central chamado José Fonte. Quem conheça a história não poderá senão ficar feliz pelo homem. Em 2004, quando Portugal foi o país organizador do Euro, Fonte «andava a fazer estágios com outros jogadores desempregados do Sindicato de Jogadores». Andou pelos clubes secundários de Inglaterra a partir pedra, até que chegou a sua hora. Merece mais do que ninguém erguer a Taça das traças. O segundo caso é por demais conhecido. Éder é em si mesmo um poema épico. Se viram as imagens da avó guineense cheia de orgulho do seu Éderzito, saberão do que estou a falar. Veio para Portugal com 3 anos, foi acolhido pelo Lar Girassol, nunca frequentou as academias dos grandes clubes, andou por equipas anãs, chegou à briosa, foi fazendo pela vida ouvindo cobras e lagartos da falta de jeito que o levava a tropeçar em si próprio. Bendita mental coach que lhe enfiou a luva branca nas canelas. Eu comi com ela nas trombas, de tantas vezes que o critiquei. E apesar de ter previsto o desfecho e de durante o jogo ter rezado para que o tipo entrasse (não tínhamos outro para a posição), bem que mereço a chapada. Éder não é agora o melhor avançado do mundo, mas Éder é para todos uma lição. Por fim, a imagem, a tal imagem do central luso-brasileiro, de seu nome Pepe, a vomitar no final do jogo. Estava a ver aquela imagem e a lembrar-me de quantos portugueses não disseram sobre Pepe que ele não sentia a selecção porque não era português. Ele há ironias do caneco, esse mesmo caneco, o que trouxemos para casa e é nosso, o das traças, o que teve no esforço titânico de Pepe um símbolo perfeito para a história desta conquista.



Mas qual conquista, questionarão os críticos? O mundo está cheio de críticos, devemos dar-lhes graças. Eles são a praga que nos obriga a descobrir e desenvolver novos praguicidas. As duas forças opor-se-ão eternamente, a dos que fazem e querem fazer contra a dos que tudo o que fazem é comentar quem faz e quer fazer. Tudo o que fazem é deveras importante e inspirador, estamos-lhes gratos. Por certo, foram as críticas que em tempos idos levaram Scolari a ceder à pressão: mete os do Porto. Da mesma forma, terão sido os críticos que abriram a consciência de Fernando Santos e o fizeram encontrar maneira de jogar com o meio campo do Sporting mais Renato. Só a partir daí é que a selecção encontrou algum rumo. Há uma palavra para isto, é a palavra entrosamento. Correu bem, temos os críticos para tecerem loas. Corresse mal, teríamos os críticos para deitar a baixo. Também está certo. Mas entre todos os críticos, há sempre um que mais se destaca. Ronaldo disse sobre a Islândia o mesmo que meio mundo disse a nosso respeito, demasiado defensivos, cínicos, nojentos, o diabo a sete. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Quem olhe com atenção para o golo derradeiro fica com uma ideia do que nós fomos, uns chatos, uns empata fodas, fomos como as traças, fomos, de facto, uns campeões. Moutinho ganha a bola entre dois galos capões com o dobro do seu tamanho, parecia que estava a jogar ao meio, não desistiu, meteu o pé, ganhou a bola; mete para William Carvalho e este fez o que melhor sabe, ao segundo toque meteu curto para Quaresma, o cigano, e deixou os galos a cantarem sozinhos; Quaresma, pressionado, volta a meter de primeira para Moutinho, parecia a dança do vira; Moutinho descobre Éder ali ao lado e passa-lhe a bola; ombro a ombro com um defesa francês, Éder consegue ganhar posição e fazer o remate, depois de ter olhado para a direita e de ter descoberto o melhor vazio das nossas vidas. A selecção foi muito isto durante todo o torneio, isto que não é bonito nem feio, isto que é como a água mole em pedra dura. Tanto bate até que fura.


Agora não me chateiem, o furo está feito e eu quero beber desta água. Ah, que tristeza este povo que é só futebol e Fátima e fado. Deixa ser. E vocês, ó fadistas hipócritas das redes sociais, da burguesia instalada, dos remoinhos de vento, das bocas, sempre a dizerem mal de tudo e sem um punho para levantar quando é preciso dar o peito às balas. Manifestações há muitas, ó palerma. Tantas quantos os chapéus. Esta é de alegria, não esperem que para revoltas tenham a mesma adesão, pois o povo nunca foi nem nunca será de se dar às revoltas como é de se dar ao riso. Compreendam que em parcos 80 anos de vida (médias optimistas), rir é bem mais proveitoso do que qualquer outra coisa. Sejam, pois, dignos discípulos de Epicuro. Ou então revoltem-se contra o São João. Acabem já com o Santo António em Lisboa. Sugiram um referendo para que de hoje em diante só seja permitido sair à rua se for para greves e manifestações por coisas tão prementes como os direitos dos trabalhadores, um lugar na Goldman Sucks (sic), um vestido comprido para a Ágata, a colecção Miró, o NOS Alive etc & tal. Afinal, para que fomos todos à rua nos últimos quatro anos senão para dizermos que queríamos ser felizes? E agora, agora que temos essa possibilidade, nem que seja de bolsos vazios, vamos negar-nos a tamanha alegria? Não me fodam. É só um dia, é só uma semana, temos tempo para voltar a cair na real, a real pasmaceira imposta pelos gatunos que nos governam. Deixem pois que o circo e o pão invada as ruas nem que seja por estes breves instantes de alegria, que eu gosto tanto de ver alegria nos rostos das pessoas, de vê-las iludidas enquanto a morte não chega para fazer das suas. E reparo com gozo na proliferação de notícias sobre conquistas desportivas, um arrastão de títulos, alguns deles com mais de cinco anos, a invadirem murais como se de repente fôssemos os melhores da pesca desportiva ao tiro ao arco, passando pela columbofilia e arredores. É bom pensarmos que somos os melhores, nem que seja nisto de não darmos conta em tempo real do quão bons temos sido ao longo dos anos em inúmeras coisas. 

2 comentários:

MJLF disse...

Belo texto :) bjs

Take Direto disse...

Obrigado pelo texto.
Sabes, tenho muita pena de quem fica tão enervado com a alegria do futebol. Ou daqueles que, percebendo, festejam mas depois ficam tentando se conter. "Já chega". Isto é um grande feito. Uma delícia, uma maravilha. Merece ser festejado. Tantas desilusões que se sofria tanto. O Euro 2004 é o exemplo acabado de um enorme sofrimento coletivo, um disparate sem tamanho. Esta vitória contra a França, uma final que teria sido perdida em outros tempos, só com a lesão do Ronaldo, é redentora.
Tudo o que escreveste é maravilhoso. O Éder, o Fonte (não conhecia a história) e a fénix renascida das cinzas - Ronaldo de jogador retirado de campo, ferido, a grande motivador na linha, junto com todos.