terça-feira, 30 de agosto de 2016

UMA RAPARIGA É UMA COISA INACABADA

Por onde quer que se vá, todas as referências biográficas à britânica Eimear McBride (n. 1976) apontam para um facto: o romance de estreia, intitulado Uma Rapariga é Uma Coisa Inacabada (Elsinore. Março de 2016), levou nove anos a ser publicado, perdido por dezenas de editores que ou o ignoraram ou simplesmente deixaram passar os anos até que o facto pudesse ter interesse editorial. É um sinal dos tempos, a recusa repetida funciona como uma espécie de credencial. Isto sucede porque tem-se a ideia de que a boa literatura é mau comércio, pelo que quanto mais difícil for a publicação maiores serão as probabilidades de estarmos face a boa literatura. Quando a créditos tais se juntam comparações com Beckett e Joyce, ora exageradas, ora algo forçadas, o caso torna-se intrincado. Evitarei precipitações similares, até porque o que de beckettiano e de joyciano possa haver em McBride é o que de menos interessante há em Beckett e em Joyce, ou seja, uma intenção de explorar os limites da linguagem desconstruindo a sua estrutura convencional.

Neste caso, o desafio colocado à tradução exemplar do poeta Daniel Jonas assenta todo ele na perturbação sintáctica do discurso. Com uma pontuação peculiar, sobrecarregada de pausas e de inversões, a autora procura reflectir o estado tumultuoso das personagens, sobretudo a partir do olhar agitado, confuso e desorganizado da narradora. Exemplo 1: «Nunca. Mas nunca. Toques. Nessa. Coisa. Horrorosa. Vai-te. Dar. Verrugas. Isso. É. Hor. Roro. So» (p. 19). Exemplo 2: «Seucagalhãodemerdainútildeustevalha» (p. 25). Exemplo 3: «Eu digo estúpida vai à merda vai-te foder vaca puta punheteira merdosa fodilhona puta porca» (p. 32). Exemplo 4: «Sei soletrar mas é muito rápido para poder perceber f.u.g.i.r com o s.a.c.r.i.s.t.ã.o e vivem em p.e.c.a.d.o em tal e tal lugar» (p. 39). Fiquemos por aqui no que toca a exemplos. Servirão eles para dar uma ideia das dificuldades colocadas à leitura, dificuldades similares às que se nos colocam no relacionamento com um espírito nervoso, assaltado de histeria, traumatizado, debitando de um jorro os seu males em discurso tão desarticulado quanto o pensamento.

Esta sintaxe como que exibe a respiração da personagem, uma despersonalização patológica que nunca perde por total a lucidez. Produz, em si mesma, um efeito descritivo da personalidade que enforma o narrador. Tomando-lhe o pulso, o leitor coloca-se perante um desafio que não está tanto ao nível da interpretação como está ao nível da aceitação. Não podemos sequer afirmar que Uma Rapariga é Uma Coisa Inacabada é um romance difícil. Não o é no sentido de uma exigência interpretativa e até etimológica como o são certos livros de Joyce. Também não o é no sentido filosófico sugerido por Beckett. É, contudo, um romance exigente, na medida em que solicita ao leitor, espera do leitor, uma predisposição de ouvinte. O aspecto mais fascinante deste labor formal é precisamente esse efeito alcançado sobre o leitor, o qual se descobre enquanto espectador tanto quanto mais penetra no texto.

A ironia está em que a resistência da personagem central à austeridade católica da sua família desestruturada vislumbra no exercício da escrita, e na subsequente relação com um leitor abstracto, um ambiente tanto de divã como de confessionário. Em suma: «O que fiz eu? Sexo como. Ir à missa. Confissão» (p. 115). Concorre a favor desta relação uma história, afinal, tão realista e compreensível como tantas de famílias disfuncionais que pululam no mundo civilizado. Uma jovem rapariga sexualmente iniciada por um tio, um irmão com um tumor cerebral, um avô austero, uma mãe frustrada, uma mulher que é uma rapariga, uma rapariga que é uma coisa inacabada… O cenário é tão realista que dispensa frivolidades como as referências à entrada na vida adulta, conflitos essenciais entre educação religiosa e descoberta da sexualidade ou eventuais tomadas de posição sobre a condição feminina no seio da reinante hipocrisia católica.

Uma outra dimensão seduz-nos para o imo do texto, cativa-nos apesar dos espinhos, e essa dimensão é a rapariga que a páginas tantas descobre o que tantos de nós já descobrimos acerca de nós próprios: «Não há mais espaço nesta parte de mim» (p. 83). Eimear McBride escreveu um belíssimo livro, conseguiu equilibrar a exigência experimental da linguagem com uma história pungente. O grande mérito deste romance está, precisamente, em obrigar o pensamento do leitor a desviar-se das convenções que o (de)formam, a libertar-se delas e a colocar-se simplesmente na posição de ouvinte. Não ser intérprete senão pela capacidade de ouvir, faculdade tão nobre e empobrecida em tempos de ruídos ensurdecedores. 

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