terça-feira, 25 de outubro de 2016

HORA DA MORTE


Isto está pela hora da morte
espero permanecer até ao meu próximo aniversário
não peço nem mais.
Depois
com um pouco de insistência
virei a ter certas regalias
um desconto nos comboios suburbanos
(oh, que não me minta a memória
tudo começou com o foguete Porto-Lisboa
roçaram-se nos corredores os peitos
nem sempre da mesma altura
ainda sou daquela idade)

Espero qualquer túnel
que resgate a esperança
de sustos da escuridão
nos faça falar por todos.
De noite,
tudo se apanha em voo, vai-se aos sentidos mais aguçados
aqueles que encontramos nos nossos desenhos de criança
quando não sabíamos do que se tratava:
Se não se trata de perigo
de que temos medo na hora da morte?
Do escuro da morte?

Da morte? Só se define a morte por ela ir ser indefinível
não se define o que estará,
o nosso passo será de gigante
comparado com a timidez da vida
(a nitidez da vida)

Agora directos à morte
sem preparação específica
atlas, conselhos
ou um vislumbre de estratégia que nos faça largar de uma para outra frase
assim, sem transição:
A vida é bela. A morte.
Qual é o perigo?

Eis as duas frases que referia, aliás três.


Sérgio Godinho (n. 1945), in O Sangue Por Um Fio (2009). Celebrizado enquanto escritor de canções, Sérgio Godinho assinou igualmente livros de ficção, histórias infantis, um volume de poemas. Ainda que entre as suas canções e a sua poesia possamos encontrar variadíssimos nexos, nos poemas as palavra libertam-se dos espartilhos métricos e da coerência narrativa. Voluntariamente elípticos, por isso mesmo algo enigmáticos, os poemas de Sérgio Godinho propõem uma revisitação do vivido guiada pela perspectiva da morte. A tensão entre as duas dimensões da existência impele a uma interrogação crítica, uma espécie de exame a partir de uma inquietante desfiguração de medos, receios, memórias, ilusões.

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