quinta-feira, 3 de novembro de 2016

ANTEMANHÃ


Arredado do “pseudocinismo” triunfante, Teixeira de Pascoaes não é conciliável com a lírica à la carte da actualidade. Resiste por isso esquecido a um canto empoeirado, preterido por modernismos de pacotilha e surrealismos de cabeceira. Não interessa porque questiona, incomoda, exige do pensamento um esforço de concentração nada dado à ligeireza criativa dos dias correntes. Onde terá adormecido a luz outrora vislumbrada pelo aristocrata de Amarante? De olhar atento às matérias do mundo, feriu-se-lhe a consciência de observar uma miserável paisagem humana de indigentes andrajosos, mulheres agonizantes com filhos ao colo, pedintes desgraçados, mendigos, lares desfortunosos, magros proletários, pobres pescadores, enfim a dor dos oprimidos, a grande dor do sofrimento humano. Tanto no campo como na cidade, uma paisagem humana degradante existindo no seio da Natureza restauradora, entre rochas que meditam e árvores que sonham. Idealista? Cabalístico? Místico? Panteísta? Talvez tudo isso no estremecimento de quem questiona e se interroga. Entre suposições e interrogações, pressupõe como uma espécie de postulado a harmonia ignota deste nosso mundo. Por mais dissonante e caótica que pareça a realidade, o espírito tende a visionar por detrás do caos a lei que o explica e torna compreensível. Caberá ao poeta, pela força da sua expressão, elaborar a ciência dessa lei? Um poema para começar o dia:

ANTEMANHÃ


No silêncio sem fim das cousas, quando mal
Se distingue o clarão da aurora ainda distante,
E o poeta ainda vela, um canto auroreal
D'ave vibra na luz difusa e ainda hesitante...
E na penumbra ideal, que à alma nos revela
O Génesis estranho e místico dum dia,
Vê-se o desabrochar de misteriosa estrela,
Crepúsculo dum som, alvor duma harmonia...
E têm um ar d'assombro as paisagens nocturnas.
Todas as cousas vela uma nudez sagrada...
E, num recanto escuro, uma árvore soturna
Ergue os olhos, ouvindo a voz da madrugada...
Percebe-se que vai, em breve, acontecer
O quer que é d'extraordinário e nunca visto.
Tudo sonha e medita... A luz do alvorecer,
Para uma pedra ou flor, é um verdadeiro Cristo!
O dia já vem perto. E doces sensações
Agitam suavemente os ramos do arvoredo.
Vê-se no olhar dum rio a bruma das visões
E o Riso transfigura a face dum rochedo...
Que branda comoção as cousas enternece...
A terra, ao ver o sol, traduz-se numa flor,
Tal como um poeta, ao ver o sonho que alvorece,
Se converte no fluido etéreo dum amor...
Num éter misterioso, imenso, indefinido
Que, vibrando, produz o dia da Verdade
Que para um fim divino, apenas pressentido,
Vai guiando, através da morte, a Humanidade...


Teixeira de Pascoaes, in Para a Luz, 1904.

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