terça-feira, 8 de novembro de 2016

BUFFALO BILL AND THE INDIANS, OR SITTING BULL'S HISTORY LESSON (1976)


O percurso de Robert Altman (n. 1925 – m. 2006) esteve desde muito cedo ligado ao western, nomeadamente através da realização de alguns episódios da mítica série Bonanza. McCabe & Mrs. Miller/A Noite Fez-se Para Amar (1971), filmado já para o grande ecrã, ofereceu uma outra consistência a essa ligação ao mais tradicional dos géneros cinematográficos. Mas Altman nunca foi um tradicionalista, muito menos um conservador preocupado em respeitar os cânones e obedecer a fórmulas. A prova acabada desse espírito desafiador é o comedy western Buffalo Bill and the Indians, or Sitting Bull’s History Lesson/Buffallo Bill e os Índios (1976), propondo-se usar o cinema no sentido oposto ao que mais vezes ele segue e serve: o da mistificação. O realizador de Popeye (1980) mostra-se interessado em desmistificar as figuras tipo de uma História rica em fabulações, colocando as suas personagens no plano em que a farsa é desmascarada.
Neste filme, a lenda de William Frederick Cody, popularizado como Buffalo Bill, surge configurada no ambiente propício de um espectáculo circense sobre o Oeste Selvagem. De facto, William Cody tornou-se mundialmente famoso pelo Buffalo Bill’s Wild West Show, onde encenava feitos supostamente heróicos de uma nação menos interessada nos factos do que na consolidação dos seus ícones. Ora, para esta consolidação muito contribuiu a indústria cinematográfica durante o séc. XX. Robert Altman transporta-nos para um pouco antes desse advento, descarnando até ao osso a superfície, a fachada, o embuste, para que possamos perceber o modus operandi de uma máquina de fabricação de lendas.
O Buffalo Bill interpretado por Paul Newman não é nenhum exímio caçador de búfalos, ícone do Oeste selvagem, mas antes o director e a estrela principal de um show cujo propósito final é transformá-lo num herói da nação. Parco herói, assim nos aparece, preocupado em ser visto sem peruca, alcoólico, ardiloso, oportunista, até sexualmente incapaz, vulgar, demasiado vulgar, excepto quando em delírio mental parece soltar algumas das suas angústias mais íntimas, nomeadamente a consciência da mentira que representa. Numa fase em que o show requer novidades para se manter de pé, lembra-se de introduzir no espectáculo o chefe índio Sitting Bull. Tope-se a ironia.
De facto, Touro Sentado fez parte do show de Buffalo Bill durante alguns anos. Como e em que circunstâncias, não sabemos. Altman desloca-o como quem oferece vida a um fantasma, posicionando-o num lugar de resistência dentro do próprio espectáculo. As suas reivindicações serão uma dor de cabeça permanente para Buffalo Bill, que não está interessado em contar a história como ela realmente se passou. Os conflitos levados a cabo no interior da produção, acompanhados pela sofisticação de viçosas cantoras líricas, e pela presença de Burt Lancaster no lugar de narrador participativo, aquele a quem cabe levantar as lendas, favorecem o clima geral de opera buffa com momentos de vigoroso cinismo historiográfico.
No elenco aparecem ainda Shelley Duvall, Geraldine Chaplin e Harvey Keitel, garantindo ao filme uma harmonia que acabou por lhe valer um Urso de Ouro no Festival Internacional de Berlim. Não admira que o prémio tenha vindo de um festival europeu, já que, se é exagerado considerar anti-americano um filme destes, é justo olhar para Buffallo Bill e os Índios como um exercício crítico acerca da função mistificadora da indústria do entretenimento. Exercício de tal espécie, levado a cabo por um cineasta norte-americano, tendo por objecto uma das figuras iconográficas da América do Norte no contexto específico de um género cinematográfico tipicamente americano, só poderia ser do agrado de uma crítica não instalada ou absorvida pelos mecanismos publicitários da grande fábrica hollywoodesca.

A lição de história de Sitting Bull aqui encenada pode ser vista como um relevante passo no contexto de uma reflexão profunda acerca da América. Parte considerável da carreira de Robert Altman aponta nesse sentido, tantas vezes com um apuramento satírico e autocrítico raros na Hollywood mais conservadora e conformada. A singular sobreposição de falas que deu fama aos seus filmes encontra aqui um cenário privilegiado. Note-se como o silêncio sepulcral da personagem de Sitting Bull é o contraponto ideal numa lição de história onde a cacofonia generalizada prejudica a lucidez individual. Deve ser a isto que damos o nome de inteligência, sem moralismo nem sentimentalismo a prejudicar a retórica do cinema.

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