segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

VIAGEM DE COMBOIO COM POEMAS DO ZÉ PETINGA


os poemas escritos com tinta rosa sabem mais a ti
ao longo de todo este caminho pressinto-o

os cigarros são fumados com a promessa
de que o fumo não acabe
e as palavras surgem quando o mar se levanta

consigo perceber muito bem
as tardes no café do tónho do casino
eu habitei as duas casas dessa rua
o imóvel e o habitat natural dos versos escritos com
maresia

de longe vem o vento que bate na janela
continuamente chegam pessoas ávidas pela viagem
outra nem tanto

(acendo um cigarro)
arrastado pela sombra que foge
absolvo a tua perdição
foste um menino celeste que agora transportas
as ruas de bruxelas de paris de amesterdão
a praia do norte
absolvo-te
os outros gesticulam-te primaveras mortas

(a cinza cai em cima do papel)
leio o primeiro poema que ainda é rosa
(o cobrador pede-me o bilhete
pica nervosamente o pedaço de papel vermelho
sem saber que esse pedaço de papel serve de marcador
no livro: confissões de verlaine)

de s. martinho a óbidos
tomo o poema um café com natas
lá fora as árvores chegam ao céu
(já chegámos ao bombarral
no banco da frente dormem duas miúdas estrangeiras)
porque é que o diálogo sustém sempre o sonho
e o pólen eleva no ar o fluido do mundo?

penso à velocidade desta máquina
como se houvesse energia fora do corpo
e produzisse luz de papel
(o cobrador ralha com três putos
diz que gosta de dar educação aos mais novos
apanharam o comboio atrasado na tabela
não têm bilhete
o velho pede dez contos de multa a cada um
o mais novo de rabicho
ri de frente para a janela)
vou escrevendo em linhas tortas
(o velho limpa a testa suada com as mãos
condescende
o puto das notas ajeita o cabelo
enfia na cabeça um boné de pala
paga os bilhetes
suspira)

ainda bem que rebentámos da nossa precoce virilidade
afinal somos da praia
apenas mais um lugar no mundo

penso de novo no livro
antecipo-lhe a capa
as folhas seguem aqui neste comboio
(acendo só mais um cigarro)
as canções que escreves
podiam ser artérias que ligassem todos os livros
de todas as bibliotecas
o debate pela caverna
onde as raízes são astros
apenas isso

consigo imaginar a alegria
dos cabelos compridos
(olha acabámos de passar o apeadeiro do ramalhal)
eles ficam inertes
com o tempo que passa

sabias que nós adquirimos
tempestades de todas as cores?
(leio agora a canção de van horst)
percebo nos poemas
o desfio de borboletas rosa
(em torres vedras entrou um bando de mulheres
muito faladoras e a comer bolachas)
são minúsculas as flores
sim
minúsculas e devoradoras

acredito em ti pela vida fora
não quando pararmos

havemos de ter resposta
quando não conseguirmos mais falar
(o comboio parou a meio do caminho
julgo não ser nada de especial)


m. parissy (n. 1969), in cafurnas (2002). «m. parissy procura nas suas publicações (opúsculos de autor ou livros editados em editoras marginais) criar um ambiente marcado por uma grande amizade pelos outros e uma alegria de viver, fundindo estas emoções com um pensamento interior de solidão e, por vezes, nostalgia de um tempo que se esvai e cuja memória se obriga em fazer perdurar nos seus poemas. / Lugares míticos como Lisboa, Paris ou Bruxelas, autores de culto como Ginsberg, Éluard ou Ferlinghetti, vivem ao lado de personagens de carne e osso (o mizé, o grilo, o pássar'da névoa, o silvino, o petinga) nascidos na geografia do poeta, e de locais que ajudaram a construir o seu edifício poético» (Jaime Rocha, in nota introdutória a cafurnas).

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