segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

CLONAZEPAM BLUES


Se fôssemos buscar todos os restos de tecido
De todos os índios que viveram nos Apalaches
Depois de toda a neve
Se da agonia das carroças dos arcanjos
Ou seja
Se da expiação da cidade santa resultar só
Uma boca do metro
Sabes, um sem abrigo no metro
Um cessar das luzes
Ou rebentos de flores nas mãos
Do homem cego a pedir esmola
Na escadaria
Se exigíssemos ao valete de espadas
Ou às donas de casa
Largar o diazepam e comutar
Como se alguém tivesse prometido
Que nunca passaríamos fome
E teríamos livrarias fartas
Com Mark Twain e John Steinbeck
E mesmo Jim Morrison
E teríamos sacas gordas de leguminosas secas
Onde enfiar as nossas mãos
E absorver suavemente
Os cheiros da rua do mercado

Sabes que
Se os cães não ladrarem no amanhecer gelado
Sentir-me-ei aflito
Febril se os cães não ladrarem aos primeiros
Raios rubros da aurora
Sentir-me-ei aflito
Lastimoso entre as árvores
Febril
Sentir-me-ei aflito
Se não houver galos e forem carros
Potenciais camiões do lixo
Se forem só semáforos e gritos
E leituras de poesia sob as luzes
Da cidade
Febril
Sentir-me-ei aflito

Enquanto a serenidade dos índios que viveram nos Apalaches
Não chegue
Enquanto a neve não ouse derreter
E reste só o murmúrio do riacho
Por entre o verde
A correr
O murmúrio do riacho
A correr
Sentir-me-ei aflito


Mariano Alejandro Ribeiro (n. 1993), in Antes da Iluminação. Nascido em Buenos Aires, reside em Portugal desde os dez anos de idade. O livro de estreia permite-nos constatar que assimilou com desembaraço a herança Beatnik, não descurando o que nela havia de desprendimento lírico e abnegação orientalista. Típica do seu tempo, a poesia de Mariano Alejandro Ribeiro integra no corpo do texto um caleidoscópio de referências várias, com especial predilecção pelos ícones de uma cultura erigida nas margens do cânone. A ironia oferece-lhe ao ritmo desenfreado um tom ligeiro que aproxima amiúde o discurso daquilo a que se convencionou chamar de poesia pop, conquanto entendamos por pop uma inclinação para seduzir o leitor com uma linguagem onde o humor e a emoção não foram esvaziados de conteúdo. Ora em verso, ora em prosa, os poemas de Antes da Iluminação indicam um caminho a que valerá a pena estar atento.

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