Em tempos não tão extintos como tenderíamos a julgar, Hans
Holbein foi criticado por ter oferecido a Cristo o realismo de um cadáver, a Veronese
censuraram a satisfação patenteada numa recriação da Última Ceia e Doménikos
Theotokópoulos viu-se excomungado por pintar santos pelos quais não apetecia
rezar. Ao autor da fotografia recentemente premiada pelo World Press Photo
caberá uma outra forma de excomunhão, entre pares e massas indignadas pela
suposta premiação de um momento de celebração terrorista. Remete-me esta imagem
para uma outra, igualmente representativa do terrorismo tal como
hoje o vivenciamos. Refiro-me à célebre fotografia que ficou conhecida
como The Falling Man, captada aquando dos ataques ao World Trade Center em
2001. Há, no entanto, uma diferença substancial entre essa imagem e a
fotografia recentemente premiada: a identidade da vítima. Na fotografia de
Burhan Ozbilici sabemos quem é a vítima em concreto, sabemos que se trata de
Andrey Karlov, embaixador russo na Turquia assassinado numa galaria de arte durante
a inauguração de uma exposição. Conhecemos também a identidade do assassino, ao
passo que na imagem de Richard Drew a identidade dos intervenientes é
desconhecida, o momento guarda um grau de abstracção que nos distancia da
realidade. A fotografia de Ozbilici produz um efeito perverso, aproxima-nos da
realidade demonstrando-nos o imponderável. Assassination in Turkey parece
uma encenação, mas não é. As figuras podiam ser bonecos de cera, mas não são. O
enquadramento da galeria oferece à cena central um ambiente dúbio, inquietante,
desafiador. Mas é tudo claro, objectivo, patente. Em era de pós-verdade, esta fotografia questiona-nos sobre o
autêntico, mostra-nos quão absurda é a realidade. Nada há no aspecto do homem
armado que nos faça desconfiar dele, nada há que nos leve a supor tratar-se de
um terrorista. O que há de comum entre todas as obras aqui aludidas é a
capacidade de nos interpelarem acerca dos modos de representação da realidade,
da relação que estabelecemos entre o olhar e o objecto de observação. Cristo
não estava à frente de Holbein quando ele o pintou. Mas como pintá-lo senão
representando um cadáver? Seria possível uma Última Ceia sem o contentamento
que Veronese lhe associou? Não terá El Greco sido o mais realista possível ao
oferecer à santidade uma dimensão feérica? Tanto The Falling Man como Assassination
in Turkey representam o terrorismo de formas diversas, mas em ambos os casos
conseguimos entender a congruência dos modos de representação. A primeira
fotografia é uma imagem de espanto, a segunda surge já num tempo em que ao
espanto foi usurpado todo o potencial exegético. É a fotografia certa num tempo
em que entre a verdade e a mentira se esbateram os filtros. Acusá-la de celebrar
o terrorismo equivale a nada. Melhor, vale tanto quanto acusar Doménikos Theotokópoulos
de ter pintado santos que não estimulam a oração.
5 comentários:
Textos bem escritos que conseguem colocar em termos conceptuais a história, a contemporânea e a passada, no sentido de uma leitura decifradora de ambas, porque ambas se tocam, fazem-me alcançar um grande contentamento. São raros, porque me parece que demasiados crêem ser possível escrever a história desprezando ou menorizando, em termos de interesse, o tempo em que vivem. Se um historiador não consegue entender a complexidade do tempo em que vive será difícil compreender a complexidade de um tempo que de todo não lhe é possível experienciar e que por inteiro desconhece. Este é um dos teus textos mais notáveis que tenho lido e a primeira frase sobre Holbein, Veronese e o El Greco é excepcional, um muito pertinente e bem encontrado lugar de partida para a análise da fotografia em questão. Textos como este que publicas agora tornam ainda mais evidente uma das principais características do “comentadorismo” profissional e doméstico vigente e amplificado: uma retórica inconsequente quase sempre “ao lado” do problema em discussão. «Doménikos Theodokópulos viu-se excomungado por pintar santos pelos quais não apetecia rezar» é uma frase brilhante por várias razões das quais vale a pena destacar uma: a sua simplicidade é aparente e as suas consequências muito frutuosas. Parabéns e um abraço!
Excelente reflexão, Henrique. É absurda a condenação, por diversíssimas razões. Além do mais, a guerra psicológica e mediática nunca deverá ser um critério para ajuizar do valor de um trabalho que tem uma forte componente pessoal, portanto subjectiva, mesmo que (ou ainda por cima...) realizado numa fracção de segundo.
Grato a ambos pelos comentários. Faltou acrescentar apenas uma coisa: é uma fotografia jornalística. Daí que possa parecer tão estranha, tão desabituados que andamos de jornalismo.
É também uma fotografia jornalística num mundo onde todas as pessoas podem tirar fotografias, com smartphone ou outra máquina. Num mundo onde rapidamente se partilham palavras e imagens nas redes sociais. Mundo complexo este em que vivemos. Quando vi esta fotografia a primeira vez achei que era ao estilo Tarantino, só depois me apercebi do que se tinha passado. saúde e bjs para toda a tribo
Sim, o tipo parece saído do Pulp Fiction.
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