sexta-feira, 3 de março de 2017

THE LEFT HANDED GUN (1958)



São poucos os filmes realizados por Arthur Penn (n. 1922 – m. 2010), apesar das 3 nomeações para Oscar de melhor realizador e da admiração declarada de vários cineastas europeus (Nouvelle Vague incluída). Estreou-se no cinema com um western admirável, catapultando para o estrelato o então jovem Paul Newman. O papel de Billy the Kid assenta-lhe que nem uma luva, não sendo improvável certa influência exercida sobre Kris Kristofferson no filme que Sam Peckinpah (n. 1926 – m. 1984) dedicou à mesma personagem. É certo que William Bonney, dito Billy the Kid, tem um lugar próprio na história do western, sendo inúmeras as abordagens cinematográficas a tal figura. Arthur Penn oferece-lhe uma dimensão psicológica nunca antes vista, baseando-se numa peça de Gore Vidal para televisão. 
O Billy the Kid que encontramos em The Left Handed Gun/Vício de Matar (1958) é um jovem desamparado, perseguido pela tragédia familiar e impelido para o crime por um desejo ambivalente de vingar aqueles que ama e que o amam. O primeiro plano é sintomático da reconfiguração levada a cabo ao longo do filme. Paul Newman surge só no meio do nada, carregando às costas a sela de um cavalo doente, ele próprio débil e fragilizado. Esta debilidade não desaparecerá no decorrer da acção, transformando-se numa febre que impele a personagem para uma zona de conflito pautada por diversas perturbações emocionais. Nunca sabemos muito bem até que ponto este Billy the Kid vive no mundo dos homens, apesar da inegável lucidez e de um pensamento tão rápido como a mão que saca o revólver. 
Adoptado por um criador de gado de trato nobre, gera com este uma empatia que poderíamos dizer de tipo familiar. Numa cena em que John Tunstall, o criador de gado a quem chamam “O Inglês”, ensina William Bonney a ler, uma citação dos Coríntios desperta a curiosidade de Kid. O vidro fosco da citação é como a personalidade deste, não lhe permite observar a realidade sem deformações. Todos os seus gestos, todas as acções que leva a cabo, mesmo quando parecem motivadas por um amor ao próximo, aparentam uma descompensação que talvez tenha na sua origem certa incapacidade para ver o mundo sem ser através de um vidro fosco. 
Billy the Kid ouve-se a si próprio, não ouve mais ninguém. Nisto, é a antítese de Pat Garrett. Olhar para os dois enquanto personificações da lei e do crime, da ordem e da desordem, da norma e da loucura, é muito menos interessante do que deixarmo-nos fascinar pelo que em William Bonney podemos descobrir de extraordinariamente humano. Hoje diríamos que foi uma vítima das circunstâncias, colocando-lhe o rótulo dos comportamentos desviantes. Um jovem transviado. Mas fará algum sentido olhá-lo desse modo? Repare-se no título original – The Left Handed Gun – que em si mesmo enuncia a singularidade da personagem ao atribuir-lhe uma anomalia muito mais estigmatizante à época do que nos tempos que correm. É como se nele o destino tivesse já traçado a marca da excepcionalidade. Doença? Talvez. Ou simplesmente: corpo indómito. 
Há nele um deslumbramento do tipo que reservamos a tudo quanto nos aparece desregrado, selvagem, fora dos eixos, bravio, a tudo quanto provoca espanto e nos ofende com o chicote da liberdade. Pat Garrett casa-se e constitui família, Kid mantém um caso com a mulher do homem que lhe dá abrigo. Não o faz por desprezo, mas porque nele a normalidade é tão sufocante como o calor no deserto. Homens assim carregam apenas a culpa de terem que se carregar a si próprios. Vivem com paixão sem chegarem a saber o que é o amor. E essa é talvez a maior ofensa que nos fazem. Por isso os condenamos, porque nos é insuportável admiti-los entre nós, os que amamos por dever, os que amamos por já não nos ser possível qualquer forma de paixão. Como podiam os realizadores da Nouvelle Vague ser indiferentes a um filme assim?

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