Num catálogo de excelência, onde são tão raros os autores
portugueses, encontrar dois livros assinados por Júlio Henriques (n. 1953) é
por si só, mais que não seja, motivo de curiosidade. A curiosidade aumenta quando
reconhecermos no autor um tradutor de mérito. Stig Dagerman, J. M. G. Le
Clézio, Pierre Louys, Mikhail Bakunine, Benjamin Péret, Albert Cossery, Robert
Bringhurst, Raoul Vaneigem, Aragon, são apenas alguns dos nomes que constam no inventário
de traduções assinadas pelo autor de Deus Tem Caspa (Fenda, 1988). Mais
recentemente, o nome de Júlio Henriques aparece associado, enquanto editor e
coordenador, a uma das poucas revistas em língua portuguesa que vale a pena ler
do princípio ao fim. A propósito, o n.º4 de Flauta da Luz já chegou às bancas
com textos, só para dar alguns exemplos, de Henri Michaux, George Orwell, Rui
Baião, Anselm Jappe, Stefan Zweig. Imperdível.
Igualmente imperdível é o segundo livro de Júlio
Henriques publicado pela Antígona, depois da reedição em 2014, a 2.ª, de Deus
Tem Caspa. Em Alucinar o Estrume (Antígona, Janeiro de 2017) somos introduzidos
a Estêvão Vao, biólogo de formação, docente desalinhado que sobrevive de
«trabalhos irregulares, de preferência no âmbito da botânica» (p. 87). A
caracterização surge espontaneamente, não dispensando referências concretas a
um mundo actual facilmente identificável, como sejam a que logo ali sucede à
Livraria Utopia do «famoso livreiro Herculano Lapa» (p. 88). A ironia, recurso
libertário por excelência, está em que o que de mais concreto nos oferece este
livro é, por assim dizer, o que aparenta maior grau de alucinação.
Os desenhos de José Miguel Gervásio separam cerca de vinte histórias interligadas por uma personagem. Estêvão Vao
será o nosso guia pelas sobras do mundo rural português. Caminheiro por vocação, realizaremos a seu lado uma viagem na nossa terra às portas
do século XXI. A paisagem é uma comédia desoladora. As gentes ligam-se ao solo através
de intermediários de ordem virtual, sejam o jogo social FarmVille ou as Quintas
Pedagógicas para ensinar às criancinhas a origem do leite. O campo foi reduzido
a uma fachada para entreter turistas, os quais seguem distraídos por entre abandono
e desertificação. Com a agricultura convertida ao turismo pouco mais podemos
esperar que brote das terras do que uma tremenda ignorância. Em causa está não
só o retrato de um divórcio entre o homem e a natureza, mas também, e muito
mais profundamente, a acusação de um advento de extinção.
O que podemos ler nas entrelinhas deste livro, e o título
remete para isso mesmo, é a noção cabal de uma humanidade em vias de se perder,
se não se perdeu já, pois do estrume que fertiliza as terras emerge apenas a
figura alucinada do homem asséptico. Não há qualquer tipo de catastrofismo no
diagnóstico. Na verdade, o que choca é precisamente a constatação de quão
razoável é um retrato assim traçado. As causas há muito foram definidas. Do
chamado capitalismo selvagem ao neoliberalismo financeiro, assimilou o homem a
sua própria desumanização. Paradigma por de mais evidente: a Economia promovida
a religião absoluta, com suas igrejas disseminadas pelo mundo, garante ao deus
Mercado o bom comportamento dos povos, o qual se guia pela moral do consumismo
e transforma a sociedade num espectáculo. Deplorável, acrescente-se.
Que fazer com esta herança? Entre as artes do restauro e
da conservação, o mundo rural português tem vindo a encolher-se. Encolheu-se de
tal modo que já deixou de se falar de mundo. Fala-se apenas de turismo. Sufoco insustentável. Com ele vêm as insónias e o fim dos
sonhos. Ora, este turismo rural das “aldeias sem estrume”, das hortas urbanas,
das “pequenas comunidades neo-rurais”, de zonas de caça para entreter doentes
mentais, é o supra-sumo dessa ausência que tudo contamina com a urgência
material do pragmatismo. Desconfiado dos entusiastas do «regresso ao campo»,
Estêvão Vao não se demite do sonho. «Não de um qualquer sonho terapêutico, mas
daquilo que sonhava de facto quando o sono o acometia. Nisso era espontâneo
herdeiro da primitiva dimensão humana que parece ter desaparecido das mentes
forjadas pelo espírito industrioso e expansionista, desse que enfaticamente
declara que não pode estar parado. Vinha de longe, de eras em grande medida
ignoradas, o ensinamento de que sem tempo para a prática do sonho o ser humano
não vive, só sobrevive» (p. 97).
Alucinar o Estrume é um objecto raro na literatura
portuguesa. Munido de uma crítica social solidamente fundamentada, consegue ao
mesmo tempo divertir e perturbar o leitor. No fundo, usa a velha técnica do
espelho para nos dar a ver quem somos no mundo em que vivemos. E a consciência
disso é a mais perturbadora possível. Desengana-nos ao mostrar o avesso de uma
ilusão, ou seja, a realidade ela mesma pelo crivo da ironia. Numa das histórias
finais, a experiência regressiva aludida pode servir de mote aos métodos do pensamento
aqui subjacentes. É procurando perspectivar e entender quem fomos em tempos
primitivos, quais os elos que nos mantinham integrados no mundo natural e como
os fomos quebrando, que melhor nos apercebemos da decadência progressiva de uma
ideia de humano. Não porque tenhamos sido perfeitos e do paraíso tenhamos sido
expulsos. Não por via de um qualquer saudosismo estéril, mas por via de uma
constatação, como queria o racionalista francês, clara e indesmentível. Não foi
esse quem nos definiu pela capacidade de pensar? Ao abdicarmos dessa
capacidade, sobrepondo-lhe a capacidade de fazer, a técnica, a resposta
imediata e automática, sem qualquer esforço de dúvida nem vestígios de espírito
crítico, sem sonho, em suma, que homem nos resta? Uma manada de homens… onde
não vislumbramos homem algum.
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