terça-feira, 11 de abril de 2017

ALUCINAR O ESTRUME

Num catálogo de excelência, onde são tão raros os autores portugueses, encontrar dois livros assinados por Júlio Henriques (n. 1953) é por si só, mais que não seja, motivo de curiosidade. A curiosidade aumenta quando reconhecermos no autor um tradutor de mérito. Stig Dagerman, J. M. G. Le Clézio, Pierre Louys, Mikhail Bakunine, Benjamin Péret, Albert Cossery, Robert Bringhurst, Raoul Vaneigem, Aragon, são apenas alguns dos nomes que constam no inventário de traduções assinadas pelo autor de Deus Tem Caspa (Fenda, 1988). Mais recentemente, o nome de Júlio Henriques aparece associado, enquanto editor e coordenador, a uma das poucas revistas em língua portuguesa que vale a pena ler do princípio ao fim. A propósito, o n.º4 de Flauta da Luz já chegou às bancas com textos, só para dar alguns exemplos, de Henri Michaux, George Orwell, Rui Baião, Anselm Jappe, Stefan Zweig. Imperdível.
Igualmente imperdível é o segundo livro de Júlio Henriques publicado pela Antígona, depois da reedição em 2014, a 2.ª, de Deus Tem Caspa. Em Alucinar o Estrume (Antígona, Janeiro de 2017) somos introduzidos a Estêvão Vao, biólogo de formação, docente desalinhado que sobrevive de «trabalhos irregulares, de preferência no âmbito da botânica» (p. 87). A caracterização surge espontaneamente, não dispensando referências concretas a um mundo actual facilmente identificável, como sejam a que logo ali sucede à Livraria Utopia do «famoso livreiro Herculano Lapa» (p. 88). A ironia, recurso libertário por excelência, está em que o que de mais concreto nos oferece este livro é, por assim dizer, o que aparenta maior grau de alucinação.
Os desenhos de José Miguel Gervásio separam cerca de vinte histórias interligadas por uma personagem. Estêvão Vao será o nosso guia pelas sobras do mundo rural português. Caminheiro por vocação, realizaremos a seu lado uma viagem na nossa terra às portas do século XXI. A paisagem é uma comédia desoladora. As gentes ligam-se ao solo através de intermediários de ordem virtual, sejam o jogo social FarmVille ou as Quintas Pedagógicas para ensinar às criancinhas a origem do leite. O campo foi reduzido a uma fachada para entreter turistas, os quais seguem distraídos por entre abandono e desertificação. Com a agricultura convertida ao turismo pouco mais podemos esperar que brote das terras do que uma tremenda ignorância. Em causa está não só o retrato de um divórcio entre o homem e a natureza, mas também, e muito mais profundamente, a acusação de um advento de extinção.
O que podemos ler nas entrelinhas deste livro, e o título remete para isso mesmo, é a noção cabal de uma humanidade em vias de se perder, se não se perdeu já, pois do estrume que fertiliza as terras emerge apenas a figura alucinada do homem asséptico. Não há qualquer tipo de catastrofismo no diagnóstico. Na verdade, o que choca é precisamente a constatação de quão razoável é um retrato assim traçado. As causas há muito foram definidas. Do chamado capitalismo selvagem ao neoliberalismo financeiro, assimilou o homem a sua própria desumanização. Paradigma por de mais evidente: a Economia promovida a religião absoluta, com suas igrejas disseminadas pelo mundo, garante ao deus Mercado o bom comportamento dos povos, o qual se guia pela moral do consumismo e transforma a sociedade num espectáculo. Deplorável, acrescente-se.
Que fazer com esta herança? Entre as artes do restauro e da conservação, o mundo rural português tem vindo a encolher-se. Encolheu-se de tal modo que já deixou de se falar de mundo. Fala-se apenas de turismo. Sufoco insustentável. Com ele vêm as insónias e o fim dos sonhos. Ora, este turismo rural das “aldeias sem estrume”, das hortas urbanas, das “pequenas comunidades neo-rurais”, de zonas de caça para entreter doentes mentais, é o supra-sumo dessa ausência que tudo contamina com a urgência material do pragmatismo. Desconfiado dos entusiastas do «regresso ao campo», Estêvão Vao não se demite do sonho. «Não de um qualquer sonho terapêutico, mas daquilo que sonhava de facto quando o sono o acometia. Nisso era espontâneo herdeiro da primitiva dimensão humana que parece ter desaparecido das mentes forjadas pelo espírito industrioso e expansionista, desse que enfaticamente declara que não pode estar parado. Vinha de longe, de eras em grande medida ignoradas, o ensinamento de que sem tempo para a prática do sonho o ser humano não vive, só sobrevive» (p. 97).

Alucinar o Estrume é um objecto raro na literatura portuguesa. Munido de uma crítica social solidamente fundamentada, consegue ao mesmo tempo divertir e perturbar o leitor. No fundo, usa a velha técnica do espelho para nos dar a ver quem somos no mundo em que vivemos. E a consciência disso é a mais perturbadora possível. Desengana-nos ao mostrar o avesso de uma ilusão, ou seja, a realidade ela mesma pelo crivo da ironia. Numa das histórias finais, a experiência regressiva aludida pode servir de mote aos métodos do pensamento aqui subjacentes. É procurando perspectivar e entender quem fomos em tempos primitivos, quais os elos que nos mantinham integrados no mundo natural e como os fomos quebrando, que melhor nos apercebemos da decadência progressiva de uma ideia de humano. Não porque tenhamos sido perfeitos e do paraíso tenhamos sido expulsos. Não por via de um qualquer saudosismo estéril, mas por via de uma constatação, como queria o racionalista francês, clara e indesmentível. Não foi esse quem nos definiu pela capacidade de pensar? Ao abdicarmos dessa capacidade, sobrepondo-lhe a capacidade de fazer, a técnica, a resposta imediata e automática, sem qualquer esforço de dúvida nem vestígios de espírito crítico, sem sonho, em suma, que homem nos resta? Uma manada de homens… onde não vislumbramos homem algum. 

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