Quem sou eu? Dúvida clássica, diria iniciática, à qual
procuramos responder sem sucesso. Não exige uma definição enquanto resposta,
mas pede, ou porventura espera, a capacidade de delimitar fronteiras onde o ser se pense a si mesmo, autónoma e independentemente. Esforço inglório.
Os adeptos da fenomenologia ensinaram-nos a impossibilidade de pensar o eu sem
aceitarmos a sua condição existencial: eu sou um ser aberto ao mundo, eu sou
alguém em relação com o outro. A isto acrescentaremos, então, a máxima
heideggeriana segundo a qual os outros não são todos os demais além de mim, mas
aqueles entre os quais também eu me encontro. Poderemos então socorrer-nos dos
poetas, je est un autre, com Rimbaud, eu próprio o outro, com Mário de
Sá-Carneiro, e assumiremos para sempre a imagem de si como um reflexo que o outro
devolve. Falar do outro seria, então, falar de si próprio, na medida em que é
no eu que tudo se concentra.
Mas há um eu ensimesmado, obcecado pela primeira
pessoa, que se distingue do eu em relação com o outro, voltado para a segunda e
a terceira pessoas. Este último procura olhar o que o rodeia, volta-se para o
exterior movido por uma vontade de descoberta, busca o diverso, busca ir ao
encontro do diverso, mesmo quando consciente de que se carregará
inevitavelmente a si próprio no meio desse diverso. O mais que logra, muitas vezes, é gerar processos de identificação. O diverso chega-nos sempre
filtrado pelo eu, a percepção do diverso está limitada pelo eu. Mesmo um alto
nível de abstracção implica essa limitação, chamemos-lhe assim. Contudo,
vislumbro dissemelhanças entre um discurso que procura responder à dúvida
supracitada recorrendo à memória, à confissão, à autópsia apriorística do ser,
pela análise, pelas vias do autoconhecimento, e um discurso que permite a
revelação do eu através de observações e de testemunhos inscritos sobre os outros a
partir de uma percepção subjectiva do mundo.
Volto a reflectir nestas questões
depois de na sexta-feira passada me ter vindo parar às mãos as Aventuras de um
Crâneo e outros textos, de Mário Botas, publicado pela Averno a 23 de Dezembro de
2012 (a data assume a homenagem). Recolha fascinante, que me havia passado despercebida, a acrescentar ao documentário
de Almeida Faria, justamente intitulado Eu, Mário Botas (ver aqui), incursões
literárias, entrevistas e poemas do pintor nascido na Nazaré precisamente a 23 de Dezembro
de 1952. Morreu novo, ainda não tinha 31 anos, mas deixou uma obra multímoda,
intensamente concentrada no desenho e na sua potencialidade enquanto descoberta
do eu. O epitáfio é revelador: «Só podemos falar verdade quando falamos de nós
mesmos… / E a minha pintura / não é senão uma procura da verdade. / Posso falar
de mim no céu de uma paisagem».
Já nas conversas com Almeida Faria aproveitadas
para o documentário da RTP, podemos ouvi-lo dizer: «Considero que o verdadeiro
acto criador implica necessariamente um despersonalização voluntária ou
involuntária, despersonalização essa que abate os limites do Ser para simultaneamente
os tornar mais fortes» (p. 118). Ora, como conciliar a busca de uma verdade localizada
em nós mesmos com esse acto de despersonalização que ao mesmo tempo abate e
fortalece os limites do Ser? Julgo que também aqui se subleva a relação com o
outro enquanto momento de autodescoberta. Nenhum autoconhecimento se torna
possível sem esse momento de suspensão do Ser, sem essa despersonalização que epistemologicamente
podemos sintetizar na palavra crise. Uma resposta à pergunta «quem sou eu?»
implica, pois, um esforço de abandono do eu, não no sentido místico ou
sobrenatural de uma qualquer forma de nirvana ou de êxtase, mas no encontro com
o outro, na relação com o outro.
Na obra de Mário Botas este encontro surge-nos
com especial relevância, nomeadamente, nos diálogos estabelecidos com obras
literárias dos quais resultarão, por exemplo, as pinturas em relação com, e não a
partir de, Le Spleen de Paris, de Charles Baudelaire. A própria narrativa que
dá pelo título Aventuras de um Crâneo, na sua indisfarçável inclinação
surrealista, coloca-nos perante um acto de autodescoberta repleto de elementos
autobiográficos, porventura até confessionais, mascarados pelo aspecto onírico do
discurso. Terrorismo lírico, seríamos levados a pensar, não estivesse nele implícito o lirismo de um olhar imagético. É ainda da descoberta do eu que falamos quando
concluímos: «Encontrou pela frente um espelho e embateu nele vivamente. Pedaços
de vidro escorreram-lhe pelo corpo e entravam-lhe nas veias, onde substituíam o
sangue, dali em diante inútil… / No fim de contas morrer sozinho não era assim
tão difícil. / E antes do aniquilamento definitivo sorriu de forma elegante
para a Morte» (p. 30).
Mário Botas, Aventuras de um Crâneo e outros textos,
organizado por Daniela Gomes, Inês Dias, Luis Manuel Gaspar e Manuel de
Freitas, Averno, Dezembro de 2012.
2 comentários:
isto é o que se chama serviço público. gracias, Henrique.
É um prazer. :-)
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