terça-feira, 4 de abril de 2017

MÁRIO BOTAS

Quem sou eu? Dúvida clássica, diria iniciática, à qual procuramos responder sem sucesso. Não exige uma definição enquanto resposta, mas pede, ou porventura espera, a capacidade de delimitar fronteiras onde o ser se pense a si mesmo, autónoma e independentemente. Esforço inglório. Os adeptos da fenomenologia ensinaram-nos a impossibilidade de pensar o eu sem aceitarmos a sua condição existencial: eu sou um ser aberto ao mundo, eu sou alguém em relação com o outro. A isto acrescentaremos, então, a máxima heideggeriana segundo a qual os outros não são todos os demais além de mim, mas aqueles entre os quais também eu me encontro. Poderemos então socorrer-nos dos poetas, je est un autre, com Rimbaud, eu próprio o outro, com Mário de Sá-Carneiro, e assumiremos para sempre a imagem de si como um reflexo que o outro devolve. Falar do outro seria, então, falar de si próprio, na medida em que é no eu que tudo se concentra. 
Mas há um eu ensimesmado, obcecado pela primeira pessoa, que se distingue do eu em relação com o outro, voltado para a segunda e a terceira pessoas. Este último procura olhar o que o rodeia, volta-se para o exterior movido por uma vontade de descoberta, busca o diverso, busca ir ao encontro do diverso, mesmo quando consciente de que se carregará inevitavelmente a si próprio no meio desse diverso. O mais que logra, muitas vezes, é gerar processos de identificação. O diverso chega-nos sempre filtrado pelo eu, a percepção do diverso está limitada pelo eu. Mesmo um alto nível de abstracção implica essa limitação, chamemos-lhe assim. Contudo, vislumbro dissemelhanças entre um discurso que procura responder à dúvida supracitada recorrendo à memória, à confissão, à autópsia apriorística do ser, pela análise, pelas vias do autoconhecimento, e um discurso que permite a revelação do eu através de observações e de testemunhos inscritos sobre os outros a partir de uma percepção subjectiva do mundo.
Volto a reflectir nestas questões depois de na sexta-feira passada me ter vindo parar às mãos as Aventuras de um Crâneo e outros textos, de Mário Botas, publicado pela Averno a 23 de Dezembro de 2012 (a data assume a homenagem). Recolha fascinante, que me havia passado despercebida, a acrescentar ao documentário de Almeida Faria, justamente intitulado Eu, Mário Botas (ver aqui), incursões literárias, entrevistas e poemas do pintor nascido na Nazaré precisamente a 23 de Dezembro de 1952. Morreu novo, ainda não tinha 31 anos, mas deixou uma obra multímoda, intensamente concentrada no desenho e na sua potencialidade enquanto descoberta do eu. O epitáfio é revelador: «Só podemos falar verdade quando falamos de nós mesmos… / E a minha pintura / não é senão uma procura da verdade. / Posso falar de mim no céu de uma paisagem»
Já nas conversas com Almeida Faria aproveitadas para o documentário da RTP, podemos ouvi-lo dizer: «Considero que o verdadeiro acto criador implica necessariamente um despersonalização voluntária ou involuntária, despersonalização essa que abate os limites do Ser para simultaneamente os tornar mais fortes» (p. 118). Ora, como conciliar a busca de uma verdade localizada em nós mesmos com esse acto de despersonalização que ao mesmo tempo abate e fortalece os limites do Ser? Julgo que também aqui se subleva a relação com o outro enquanto momento de autodescoberta. Nenhum autoconhecimento se torna possível sem esse momento de suspensão do Ser, sem essa despersonalização que epistemologicamente podemos sintetizar na palavra crise. Uma resposta à pergunta «quem sou eu?» implica, pois, um esforço de abandono do eu, não no sentido místico ou sobrenatural de uma qualquer forma de nirvana ou de êxtase, mas no encontro com o outro, na relação com o outro
Na obra de Mário Botas este encontro surge-nos com especial relevância, nomeadamente, nos diálogos estabelecidos com obras literárias dos quais resultarão, por exemplo, as pinturas em relação com, e não a partir de, Le Spleen de Paris, de Charles Baudelaire. A própria narrativa que dá pelo título Aventuras de um Crâneo, na sua indisfarçável inclinação surrealista, coloca-nos perante um acto de autodescoberta repleto de elementos autobiográficos, porventura até confessionais, mascarados pelo aspecto onírico do discurso. Terrorismo lírico, seríamos levados a pensar, não estivesse nele implícito o lirismo de um olhar imagético. É ainda da descoberta do eu que falamos quando concluímos: «Encontrou pela frente um espelho e embateu nele vivamente. Pedaços de vidro escorreram-lhe pelo corpo e entravam-lhe nas veias, onde substituíam o sangue, dali em diante inútil… / No fim de contas morrer sozinho não era assim tão difícil. / E antes do aniquilamento definitivo sorriu de forma elegante para a Morte» (p. 30).


Mário Botas, Aventuras de um Crâneo e outros textos, organizado por Daniela Gomes, Inês Dias, Luis Manuel Gaspar e Manuel de Freitas, Averno, Dezembro de 2012. 

2 comentários:

maria disse...

isto é o que se chama serviço público. gracias, Henrique.

hmbf disse...

É um prazer. :-)