sábado, 27 de maio de 2017

ESTÚPIDA #5


Estúpida Magazine
Quinto Número
Maio de 2017
Director: António S. Oliveira
Edições Mortas / Black Sun Editores / N edições

Do Trumpismo, pp. 3-4.

DO TRUMPISMO


   Se algum dia me dissessem que um pato chegaria à presidência dos EUA, eu não acreditaria. Continuo a não acreditar. Ao contrário dos ilustres portugueses que participaram num vídeo apelando ao voto nas últimas presidenciais norte-americanas, Trump é só Donald. Não é pato. Desconfio que um dos descuidos da oposição que mais o favoreceu foi precisamente passarem a vida a olhar para ele como se ele fosse um pato. Não é, nem quem votou nele.
   É verdade que o penteado, a dicção, os lábios, os olhos, prestam-se a caricaturas. Mas cuidado, tenham medo, por baixo da falsa peruca ainda hão-de descobrir um cérebro verdadeiro. Trump é a voz de muitos que nos states pensam como ele, desde há muito e em variadíssimas latitudes. Estamos fartos de os observar nos westerns. Ainda que o talento dos argumentistas seja indubitável, a realidade supera sempre a ficção.
   Olhemos o anormal nos olhos, não nos deixemos distrair pela psoríase. O que tem Trump de tão anormal que Bush não tenha tido? O Twitter, o Facebook e outras armas de destruição maciça que jamais passaria pela cabeça de Bush serem tão poderosas. Os energúmenos do ISIS perceberam-no, servindo-se delas como forma de recrutamento transfronteiriço. Trump percebeu-o, servindo-se delas como forma de recrutamento dentro das suas fronteiras.
   Ele fala directamente ao seu público como só Hitler outrora falou, colocando-nos neste estado embasbacado de observadores impávidos mas aflitos. Nascendo rico, dirige-se aos pobres assegurando-lhes a salvação como se fosse no mesmo corpo e na mesma carne profeta e messias. Moisés em tempos de pós-verdade, promete devolver aos esquecidos da América a sua querida e majestosa nação. O discurso é típico de um nacionalista com inclinações fascistas, empolgado pela xenofobia, pelo racismo, pela homofobia, pelo machismo, por tudo quanto há de mau na raça humana e a raça humana adora. Pelo menos aquela que se revê na lógica propagandística de Trump, um retórico que, na realidade, vem devolver a uma larga fatia da nação norte-americana o orgulho que lhe foi roubado ao aguentarem um afro-americano na presidência.
   Os tipos e as tipas que votam em Trump são seres humanos como os outros, embora julguem que não. Na verdade, estão convencidos de que os outros não são seres humanos como eles. Por isso não querem pagar impostos para sustentar chulos, drogados e prostitutas com sotaque estrangeiro que passam a vida aproveitando-se do sistema. Curiosamente, em certa medida Trump é um desses chulos. E a primeira-dama uma dessas prostitutas.
   Descendente de alemães emigrados na América, nasceu em berço de ouro e fez carreira nos negócios de família. Ao mesmo tempo, foi cedendo aos apelos de uma sociedade do espectáculo sempre disposta a patrocinar nas suas páginas quem tenha dinheiro para lhe pagar as futilidades. O mundo dos reality shows é o seu, assim como o das redes sociais (que, em boa verdade, não se distingue do outro). Um produto cozinhado nos mass media contemporâneos, destemperado como a fast-food, muito do agrado de quem, à nossa escala portuguesa, se delicia com cronistas a coçar os tomates e primeiras páginas de vomitório sensacionalista.
   Insisto, não foi um pato quem chegou à presidência da mais poderosa e paradoxal das nações neste mundo. Foi um Trump. Ainda por cima de mão dada com uma sinuosa Melania. A imprensa adora.
   Ora um Trump é, como diria o poeta, uma coisa em forma de assim, que nos deixa perplexos como as coisas que não julgaríamos possíveis até nos darmos conta de que foi precisamente por não as julgarmos possíveis que elas se concretizaram. Aí temos: quando a técnica substitui a reflexão, gera-se o vazio crítico onde germinam as vozes da leviandade. Chamámos-lhe em tempos populismo, até o politicamente correcto nos convencer de que não seria muito agradável fazer derivar de povo doutrina tão desprezível.
   O que lhe vamos chamar agora?
   Trumpismo é conceito a ter em conta, ainda para mais com associações tão foneticamente pertinentes em língua portuguesa. Trumpismo de trampa, toda a trampa, a trampa de um mundo pervertido e às arrecuas, desmemoriado, acrítico, insensível, cativo de uma hipersensibilidade que rapidamente degenera em depressões impotentes, um mundo de suicidados à nascença, monstrinhos educados para vencerem, serem os melhores, andarem nos quadros de honra, independentemente da infelicidade e das frustrações que carregam dentro, um mundo completamente afastado da Natureza e dos seus sagrados ensinamentos, um mundo de precários, gente que trabalha mas não sobe acima da miséria, gente sem tempo para desfrutar da vida porque a vida foi entretanto desclassificada como um planeta anão, é uma utopia. E, como sabemos, as utopias morreram, já não servem para nada, foram superadas, lá está, pelo trumpismo, este novo tempo tecnológico de sedutoras ilusões em que para ejacularem com uma mentira consoladora as pessoas preferem varrer para debaixo do tapete as verdades incómodas.
   Como, por exemplo, esta: «as oito pessoas mais ricas do mundo controlam uma riqueza equivalente àquela que se concentra na metade mais pobre da população mundial». Mas isto não interessa, é como o aquecimento global e as utopias. Tudo mentiras e falsidades. Num mundo de trampa, Trump é a verdade. A pós-verdade.


Henrique Manuel Bento Fialho
20 de Janeiro de 2017
Enquanto Donlad Trump tomava posse como 45.º presidente dos Estados Unidos

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