Os Dias do Abandono, originalmente publicado em 2002, é o
segundo livro de Elena Ferrante, posteriormente incluído no tríptico Crónicas
do Mal de Amor (Relógio D’água, Maio de 2014) com tradução de Miguel Serras
Pereira. Relata-nos a fúria de uma mulher depois de ter sido abandonada pelo
marido com dois filhos nos braços e um lobo-d’alsácia para cuidar. Olga é-nos
apresentada como tendo abdicado parcialmente da sua vida após o casamento com
Mario, acompanhando-o «onde a sua actividade profissional de engenheiro o
levasse». Alimentou, em tempos, a vontade de ser escritora, de escrever sobre
«mulheres cujas palavras fossem invencíveis, e não um manual da mulher
abandonada subordinando ao amor perdido todos os seus pensamentos». Têm dois
filhos, um rapaz e uma rapariga com os nomes de Gianni e Ilaria. O casamento
dura há quinze anos sem que nada fizesse prever a brusca decisão de Mario.
A separação abrupta deixa Olga à deriva, tomada por uma
agressividade ilustrada tanto pela linguagem obscena como pelas acções
desesperadas. Referir-se-á a tal estado como o de uma «situação borderline que atravessara»,
reconhecendo, desse modo, a dimensão patológica da sua existência. Não conseguimos
odiá-la nem por ela ter grande simpatia, tentamos compreender-lhe as obsessões,
concentramo-nos nos seus 38 anos e tentamos imaginar o que pode sentir uma
mulher da sua idade trocada por uma rapariga de 20 anos. Assistimos ao seu desespero, aos tormentos, à raiva e ao sentimento de solidão
que a desorientam com distante cumplicidade.
A determinada altura, a casa onde Olga vive com os filhos
e o cão é invadida por formigas. O episódio lembra-nos Um Copo de Cólera, novela
do brasileiro Raduan Nassar publicada em 1978. Mas se neste caso as formigas
espoletam o fim da harmonia num casal, no livro de Elena Ferrante elas potencializam
a deriva emocional. É por essa altura que reparará em Carrano, violoncelista
que vive no andar de baixo e acerca do qual Olga constrói uma imagem deturpada
pelas suas próprias frustrações mais íntimas: «Quem sabe que segredos de homem
só alimentaria, a obsessão viril do sexo talvez, o culto serôdio do caralho.
Também ele, com toda a certeza, não via outra coisa que não fosse o seu
fiozinho de esperma cada vez mais miserável, e só ficava satisfeito quando
verificava que o membro ainda conseguia entesar-se-lhe, como as folhas
moribundas de uma planta ressequida que recebe um pouco de água». Cogitações
sexuais deste tipo acompanham o dia-a-dia de Olga, são o fio condutor de uma
brutalidade que no divã do Dr. Freud mereceria o diagnóstico de histeria.
Motivada, claro está, pela experiência radical de um trauma: o abandono.
A espaços, julgamos que se encontra à beira da
loucura. O modo desleixado com que procura resposta para as carências dos
filhos, o trato oferecido ao cão, intempestivas perdas de autodomínio, a inabilidade
doméstica transformam-na momentaneamente num animal selvagem. «Não é fácil
passar-se da tranquila felicidade de um passeio sentimental à desordem, à
confusão do mundo». Com o tempo, a lucidez tomará conta da fúria. O romance
acaba bem, o que é uma chatice, caucionando o lugar-comum do tempo que tudo
cura, o tempo, esse grande escultor capaz de projectar o futuro sem abandonar
por completo o passado.
Mas ainda a meio da história há um sobressalto reflexivo
que nos interpela. Olga diz: «Uma mulher pode matar mais facilmente no meio da
rua, no meio de toda a gente que passa, pode matar mais facilmente do que um
homem. A violência da mulher parece um jogo, uma paródia, um uso impróprio e um
tanto ridículo da determinação viril de praticar o mal». De onde vêm estas
palavras? Qual o fundo moral que as justifica? Por que parece um jogo a
violência da mulher? Em que se distingue, nesse sentido, da violência exercida
por um homem? Nada há no texto que nos responda.
Nas «tensões desvairadas» relatadas em Os Dias do
Abandono a violência surge antes de uma assexuada perda de sentido, de uma obliteração
do autodomínio enquanto força matriz do autoconhecimento. No meio da rua, tal
violência é indiferente aos géneros (mesmo que, por convenção, um deles esteja
socialmente protegido). O desespero de Olga é em si mesmo violento como
violento é um parto, daí que a própria seja levada a concluir: «Escrever
deveras é falar do fundo do ventre materno». É talvez das mais belas definições
de escrever que li até hoje. Ao abandono, à perda, corresponde, desta forma, a
redescoberta do “si mesmo” que a arte é capaz de revelar quando logra falar do
fundo do ventre materno.
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