sábado, 10 de junho de 2017

AS MULHERES DE FERRANTE

As mulheres dos três primeiros livros de Elena Ferrante, reunidos em Crónicas do Mal de Amor (Relógio D’Água, Maio de 2014, 1.ª Reimpressão: Outubro de 2016), vivem num constante estado de tensão. São personagens perturbadas, estigmatizadas, antes de mais, pela ausência do outro. A esta ausência respondem com conjecturas acerca da vida dos ausentes, imaginam-se a viver no corpo de outrem, colocam-se nesse estado de stress entre o que são na realidade e o que ambicionariam ser, perspectivando-se na frustrante interpretação que fazem de si próprias a partir do que sabem da vida dos outros. Delia, a personagem central de Um Estranho Amor, procura descobrir-se a si própria reencarnando a vida da mãe. Amalia ter-se-á suicidado. Delia regressa à Nápoles natal para o funeral da mãe, persegue-lhe os passos, recorda-a, veste um vestido que era da mãe, tem uma relação com o filho do amante da mãe, tenta imaginar que vida teria sido a da mãe vivendo a sua própria vida como que condicionada, delimitada, pela constante presença de uma figura ausente. Da mesma maneira, a Olga de Os Dias do Abandono vive condicionada pela figura ausente do marido. Foi abandonada, ficou com dois filhos nos braços e um cão que nunca quis, imagina o marido nos braços da amante vinte anos mais nova, imerge desorientada num labirinto de raiva e fúria, perde as estribeiras, deixa-se tomar por pensamentos obscenos que se reflectem na linguagem e nos actos quotidianos. Já Leda, a mulher de A Filha Obscura, é-nos apresentada num profundo estado de solidão. Professora universitária, abandonou as duas filhas para se dedicar à carreira académica. As filhas vivem no Canadá com o pai, de quem Leda se separou. Vamos encontrá-la numas férias na costa jónica, à deriva entre a família numerosa  de napolitanos com quem se cruza na praia e a memória das filhas: «Já percebi há muito tempo que conservo pouco de mim e tudo delas». 

Delia, Olga e Leda estão na casa dos quarenta, atravessam crises de identidade por razões diversas, une-as a solidão, uma solidão que surge, antes de mais, do desencontro consigo próprias, enquato ocupam os dias a pensar em figuras ausentes, distantes. Delia e Leda aparecem-nos deslocadas dos seus ninhos, desprotegidas, também, pela distância, ainda que no primeiro caso o regresso às origens disfarce essa desagregação do espaço físico em que se movimentam. Mas também Olga, apesar de permanecer na residência familiar, assiste à derrocada do edifício protector. O seu próprio lar é um espaço em decomposição.

James Wood, no prefácio que acompanha Crónicas do Mal de Amor, diz-nos que «os romances de Ferrante poderiam considerar-se marcados, um pouco tardiamente, pela segunda onda do feminismo, que produziu, entre outras escritas, a ficção de Margaret Drabble sobre a prisão doméstica das mulheres (…). Contudo, há qualquer coisa de pós-ideológico na ferocidade com que Ferrante ataca os temas da maternidade e da condição da mulher. Parece apreciar o excesso psíquico, a imoderação, a terrível e singular complexidade dos dramas familiares das suas protagonistas». Esta ferocidade assume amiúde contornos de histeria que nos levam para estados limite, perdemos a mão às emoções da personagem, criamos sentimentos contraditórios relativamente às suas personalidades. Olham invariavelmente para os homens com uma omnisciência duvidosa, colocam-se acima do sexo oposto por uma espécie de conhecimento que não é mútuo. Os homens destes romances até podem ser bons tipos, mas nunca são mais do que isso. Quando não são bons tipos, são oportunistas, fracos, indolentes. A determinada altura, é Leda quem o afirma: «Os homens têm sempre alguma coisa de patético, em qualquer idade. Uma insolência frágil, uma audácia temerosa. Hoje já nem sei se alguma vez despertaram em mim amor ou apenas uma afectuosa compreensão pelas suas fraquezas».

Fortemente marcadas pela experiência do corpo, as mulheres de Ferrante activam a espiritualidade através de uma sexualidade desinibida mas, muitas vezes, fútil e desesperada. À consciência que têm do seu próprio corpo corresponde uma consciência de si próprias, num estado de isolamento que faz da relação com o outro mero pretexto para um conhecimento de si. Não são raros os momentos em que se olham ao espelho, muitas vezes observando a genitália com considerações acerca de si próprias que excedem o trivial. Estes momentos conferem-lhes uma materialidade, uma pessoalidade, uma carnalidade que as torna físicas apesar de serem personagens. 

As mulheres de Elena Ferrante são eminentemente físicas, esse é um dos aspectos que as torna mais atractivas. Têm pouco de abstracto tendo pouco de concreto, vivem como qualquer um de nós sabe que podia viver. A caracterização psicológica que delas é feita não prescinde os contornos do corpo, gerando entre este e a psique um estimulante jogo de correspondências, desafios, relações causa-efeito. Olga cita, a páginas tantas, Anna Karénina. E questiona-se: «Que tensões desvairadas nos impelem a formular as nossas exigências de sentido?» As mulheres de Elena Ferrante são uma tentativa de dar resposta a esta questão. E dão. Por onde quer que circulemos, vamos sempre dar ao mesmo: à família, ao universo doméstico, ao castelo.

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