domingo, 4 de junho de 2017

UM POEMA DE ANNA AKHMÁTOVA


SEGREDOS DO OFÍCIO

1. Trabalho criador

Assim acontece: uma lânguida inquietude;
o relógio não pára de bater nos ouvidos;
ao longe estrondos da trovoada, esmorecidos.
Ouço das obscuras vozes, prisioneiras,
como que as lamentações e os gemidos,
aperta-se um anel secreto, mas já se alteia
neste abismo de murmúrios e de tinidos
um destacado som que a todos suplanta.
Em torno tudo é silêncio tão irreparável
que se ouve a erva a nascer na floresta
e o homem com sua trouxa errando pla terra...
E já se enxerga o dia, se vislumbram palavras,
soam longínquos repiques leves de aviso -
e logo dentro de mim tudo se percebe,
e as linhas simples, a todo o seu comprido,
vêm deitar-se na folha virgem de neve.

2. 

De nada me servem as hordas de odes
nem as elegias lamentosas.
Nos versos deve ser tudo fora de ordens,
da família as ovelhas ronhosas.

Nem imaginam de que lixo, sem vergonha,
crescem os poemas, como na valeta
urtigas, bardanas, peçonha de ervas
e a pobre flor careca.

Um grito irritado, cheiro fresco a breu,
o bolor misterioso na parede...
E já soa o verso alegre, meigo, meu,
para minha alegria e vossa sede.

3. Musa

Como posso viver com este fardo,
que de Musa se atreve ao apelido...
Dizem: «com ela te deitas no prado...»
e dizem: «é o divino zumbido...»
Mais do que febre, dá um coice inumano,
depois nem mais um pio todo o ano.

4. Poeta

Que grande mistério este trabalho,
esta vida de nenhuma agrura:
espiar qualquer coisa da música
e fazê-la passar por coisa sua.

E intrometer por entre as linhas
um scherzo de outrem bem alegre,
jurando que na luz das pradarias
é teu pobre coração que geme.

Roubar qualquer coisa aos pinheiros
da negra floresta taciturna,
enquanto ergue os seus nevoeiros
a toda a volta a cortina de bruma.

E ir procurar - impudica -,
por onde calha e me aventuro,
alguns pedaços da vida oblíqua
e, ao silêncio da noite, tudo.

[Verão de 1959, Komarovo]

Anna Akhmátova (n. 23 de Junho de 1889, Odessa, actual Ucrânia - m. 5 de Março de 1966, Domodedovo, Rússia), in Só o Sangue Cheira a Sangue, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra, Assírio & Alvim, Dezembro de 2000, pp. 57-61.