segunda-feira, 24 de julho de 2017

DOIS LIVROS DE SIMONE WEIL



   Entre toda a quinquilharia que tem vindo a lume arrastada pelo centenário da Revolução Russa de 1917, dois livros de Simone Weil (n. 1909 – m. 1943), publicados quase em simultâneo, atraem-nos o foco para o essencial, até pela crítica da União Soviética concebida numa fase de terríveis conflitos internacionais que apelariam mais a sentimentos de simpatia pela Revolução do que de antipatia. Sucede que no pensamento de Simone Weil tais sentimentos foram ultrapassados pelo exercício de uma reflexão crítica autónoma e, acima de tudo, expurgada de qualquer engajamento colectivo. De origem judaica, próxima do comunismo antiestalinista, militou no movimento anarquista, chegando a alistar-se numa milícia da Coluna Durruti no decorrer da Guerra Civil Espanhola. No entanto, se o sindicalismo revolucionário exerceu forte influência nos seus escritos de filosofia política, menos influência não terá exercido um Cristianismo de tipo místico de que se aproximou sem nunca chegar a converter-se.
   No prefácio a Nota Sobre a Supressão Geral dos Partidos Políticos (Antígona, Julho de 2017), texto breve redigido numa fase final da vida, pela primeira vez publicado na revista La Table Ronde (Fevereiro de 1950), Júlio Henriques sublinha o modo como a tradição anarquista e as ordens monásticas inspiram, nesse texto, uma negação dos partidos como forças do bem. Tais fontes concorrem na obra de Weil para uma concepção do mundo algo pessimista que situa a existência humana numa experiência do sofrimento e da humilhação. Esta concepção é deveras evidente nas Reflexões Sobre as Causas da Liberdade e da Opressão Social (Antígona, Junho de 2017), iniciadas com uma crítica do marxismo da qual resulta um completo esvaziamento da palavra revolução: «A palavra revolução é palavra em nome da qual se mata, pela qual se morre, pela qual se enviam para a morte as massas populares, mas que não possui qualquer conteúdo» (p. 33). A prová-lo, para a autora, está a «Revolução Russa, que, após haver efectivamente conseguido fazer desaparecer uma certa forma de opressão, assistiu impotentemente à instalação duma nova opressão» (p. 35).
   Contextualizando, a dúvida reside em saber como pode o homem libertar-se da opressão exercida pelo mundo do trabalho. Como pode o homem ser livre? O problema da liberdade é aqui o tema essencial, na sua articulação com as exigências do trabalho e com os factores de servidão que limitam o ser humano pela força não de necessidades individuais, mas de lutas pelo poder no seio das colectividades a que cada indivíduo pertence. O passo que demos de uma economia primitiva para uma economia sofisticada foi o mesmo que nos levou do bem-estar proporcionado pela satisfação das necessidades básicas ao culto do supérfluo, estimulado por uma luta pelo poder, eufemisticamente apelidada de concorrência, que, em vez de emancipar, humilha e oprime. «A Revolução Russa, graças a um singular conjunto de circunstâncias, parecia, na verdade, trazer consigo algo de inteiramente novo; os privilégios que veio suprimir não possuíam já, porém, qualquer base social, com excepção da tradição; e as forças reais, a saber, a grande indústria, a polícia, o exército e a burocracia, longe de haverem sido destruídas pela revolução, atingiram, graças a ela, um poder desconhecido nos outros países» (p. 64).
   Traçado o diagnóstico, exige-se um Quadro Teórico Duma Sociedade Livre. Simone Weil assume os contornos utópicos do seu quadro, transportando-nos para uma hipótese de mundo onde os conceitos de “liberdade perfeita” e de “liberdade autêntica” contrastam com a realidade imperfeita e de aparências a que vamos submetendo paulatinamente as nossas vidas. À sua dimensão, este livro ocupa-se dos pilares sobre os quais pode ser erigida uma sociedade perfeita, isto é, de homens livres. Platão chamou-lhe República, Tomás Moro deu-lhe o nome de Utopia. É ainda no campo do idealismo e do utopismo que se colocam estas questões, apesar de estarmos perante uma autora a quem é impossível negar falta de coerência entre pensamento e acção. Para compreender as angústias dos operários, ela não se limitou a contemplá-los à distância. Trabalhou, ela própria, como operária. E foi dessa experiência que trouxe a sua imagem do “operário qualificado”, ser de uma civilização para a qual ainda olhamos como o burro olha para o palácio. Dotado de pensamento esclarecido e de reflexão metódica, este trabalhador é o princípio base de uma sociedade constituída por homens livres e fraternos. Não estaremos ainda aqui no domínio de um ideal de "homem novo" deveras estranho ao mundo em que vivemos?
   Talvez para essa estranheza concorra uma organização social baseada na chamada democracia representativa, a qual apenas promove os partidos políticos enquanto máquinas de estupidificação do indivíduo. Na simplicidade da Nota Sobre a Supressão Geral dos Partidos Políticos vislumbramos, antes de mais, uma inigualável fé no pensamento enquanto princípio libertador e emancipador do ser humano. Ora, na opinião da autora de L’Enracinement, o carácter dos partidos opõe-se na sua génese ao pensamento livre: «Um partido político é uma máquina de fabricar a paixão colectiva. // Um partido político é uma organização construída de maneira a exercer uma pressão colectiva no pensamento de cada um dos seres humanos que dele fazem parte. // A finalidade principal, e, em última análise, a única finalidade de qualquer partido político, é o seu próprio crescimento, e isto sem nenhum limite» (pp. 36-37) Estávamos na época dos totalitarismos, os sistemas de partido único aniquilavam a possibilidade de debate, mas a rigidez interna dos próprios partidos impunha aos seus membros uma concordância acrítica intolerável numa sociedade livre. Weil afirma que o mecanismo de opressão típico dos partidos foi introduzido pela Igreja Católica, comparando-os a pequenas igrejas armadas «com a ameaça de excomunhão» (p. 59). O que fica por explicar é o lugar da proibição numa sociedade livre. As proibições a que o texto alude são conciliáveis com a liberdade reconhecida aos indivíduos para se organizarem como bem entendem? À supressão dos partidos políticos não corresponderia uma diminuição do interesse individual pela vida colectiva? E, em consequência, uma diminuição do debate de ideias? Estaria melhor o mundo quando os partidos políticos não existiam? Ou quando, em momentos históricos situados, foram, lá está, proibidos? 

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